“Carteirinha de esquerda não dá isenção ideológica a machismo”

Críticas à falta de debate na esquerda sobre questões como opressão de gênero e preconceito e violência contra homossexuais deram o tom da mesa “Esquerda, igrejas, diversidade sexual e homofobia”, realizada no dia 13, em debate na USP.

"A violência praticada de maneira constante é muito mais comum, mas ainda é tabu. A carteirinha de esquerda não dá isenção ideológica do seu machismo”, afirmou Marilia Coutinho, doutora em Sociologia da Ciência e presidente da Aliança Nacional de Força, organização que promove o levantamento de peso.

O chileno Horacio Gutiérrez, doutor em História Social pela USP, frisou a proximidade do discurso homofóbico da esquerda e da direita, apesar de executarem estratégias diferenciadas em relação à questão. O debate integrou o Simpósio Internacional A Esquerda na América Latina, ocorrido entre os dias 11 e 13 na Universidade de São Paulo (USP).

Laerte Coutinho, cartunista e fundador da Abrat (Associação Brasileira de Transgêneros), jogou luz à percepção errônea sobre a existência de dois gêneros binários. Para ele, o transgênero é um conflito ideológico com a forma cultural de determinação do que é feminino e masculino. Denunciou também o conservadorismo no mundo dos transgêneros, o apego aos símbolos e a modelos pré-fabricados e o modo esquizofrênico como a sociedade lida com a questão. “Quando me assumi, muita gente falava que eu não era nada, não era uma travesti porque não tinha mudado meu nome. Mas eu gosto de Laerte, sou Laerte há quarenta anos. Mas, se quiserem mesmo, prazer, me chamo Sônia”, declarou.

Gutiérrez fez um panorama do percurso do machismo e da homofobia no Chile. Segundo ele, no governo da Unidade Popular de Salvador Allende, a propaganda centrava-se na imagem do homem trabalhador, como força necessária para derrotar a burguesia, enquanto a mulher aparecia de forma auxiliar, cuidadora dos filhos.

A homofobia também estava presente nas campanhas políticas –“acusações” de homossexualidade eram utilizadas como estratégia política para deslegitimar os adversários, tanto em setores da esquerda quanto da direita. “As mudanças políticas e econômicas foram revolucionárias, mas o discurso da sexualidade permaneceu conservador”, completou.

“A partir de 1973, com o golpe de [Augusto] Pinochet, a perseguição aos homossexuais foi levada ao extremo, e a esquerda sumiu da cena política”, disse o historiador. A discussão sobre a homofobia renasceria simultaneamente ao processo de democratização, na década de 1990. Mas somente em junho deste ano o congresso chileno aprovou uma lei que estabelece medidas contra a discriminação sexual: a Lei Zamudio, alusão ao assassinato de um jovem gay – Daniel Zamudio – em março.

Marilia Coutinho trouxe à mesa o conceito de “alienação corporal”, ou seja, a separação da pessoa da propriedade de seu corpo de forma artificial, algo que pode se tornar uma forma de coerção e opressão sexual. A relação sofrida com o próprio corpo, segundo ela, é uma amarra para se lidar com as formas de opressão.

De acordo com Marilia, antes dos sete anos de idade acontece uma separação de gênero: as meninas são condicionadas a se tornar seres “bidimensionais” (são privadas da capacidade de expressão da forma física, perdendo controle de funções que lhe são próprias, como correr e pular) enquanto os meninos são preservados em sua tridimensionalidade. As meninas, por consequência, tornam-se mais alienadas de seus corpos do que os meninos na idade pré-púbere – a relação com o espaço e seus próprios corpos é desfalcada.

Na puberdade, continuou ela, há uma maior taxa de sobrepeso e obesidade nas meninas, sendo a anorexia o outro lado da moeda. A relação com uma imagem desumana e irreal, muitas vezes oriunda das mídias de comunicação, é um fator que favorece a condição de vitimização de algumas mulheres e a desconstrução de suas identidades como seres humanos. “Falta uma reflexão sobre as origens das opressões, e a esquerda não foca nisso”, alertou. “A esquerda não é imaculada. Tem homofobia, tem opressão de gênero, tem estupro.”

Fonte: Carta Maior