Gilson Reis: Belo Horizonte em três atos

Dizem as raposas do antigo PSD (Partido Social Democrático) que em Minas a política conduzida pelas elites do estado são processos e relações em permanente movimento de negociações e conspirações.

Por Gilson Reis*, especial para o Vermelho

Primeiro ato

No alto das montanhas da Serra do Espinhaço e em suas adjacências, as relações e práticas políticas entre correntes liberais e conservadoras, teoricamente opostas, encontram-se ou desencontram-se, à medida dos interesses de chefes políticos locais e dos objetivos táticos e estratégicos de poder a ser alcançado. É a expressão máxima do pragmatismo político cultural e ideológico das elites mineiras.

Essa máxima histórica que dá contornos à política mineira se expressará com muita clareza no último período. O marco temporal é o processo eleitoral de 2006, quando o governador Aécio Neves e um amplo leque de forças políticas, liberais e conservadoras, com a complacência de setores do Partido dos Trabalhadores, ganham as eleições no estado. Uma articulação conspiratória de bastidores levou Aécio ao governo de Minas. Esse movimento buscava dois grandes objetivos: derrotar o candidato tucano à Presidência da República, José Serra, e isolar a candidatura de Nilmário Miranda ao governo de Minas. A vitória de Lula e Aécio consagrou a tática eleitoral desenhada para as eleições daquele ano e os objetivos dos dois líderes políticos. O resultado deixaria em aberto a disputa política na eleição nacional a ser realizada em 2010. A conspiração resultante dessa articulação política nas eleições de 2006 foi conhecida nacionalmente pela marca Lulécio.

Todavia, no meio do caminho havia uma pedra, ou seja, as eleições municipais de 2008. O acordo de 2006 levará o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, e o governador Aécio Neves, com a benção de lideranças nacionais do Partido dos Trabalhadores, a uma nova composição eleitoral. Os dois caciques, governador de Minas e prefeito da capital mineira, atuaram visando seus projetos pessoais nas eleições de 2010. PT e PSDB, numa inusitada aliança, apresentam para as eleições municipais da capital de Minas um candidato único, o empresário Márcio Lacerda, até então desconhecido no meio político do estado.

Para diminuir possíveis tensões, polêmicas e divisões, o candidato Márcio Lacerda filiou-se ao PSB, partido que vive desde a saída de Célio de Castro uma profunda crise de identidade e com intensas disputas internas. O atual presidente do PSB estadual é Walfrido dos Mares Guia, um dos maiores empresários do ramo da educação privada do país.

Márcio Lacerda foi então eleito prefeito de Belo Horizonte, tendo como vice Roberto de Carvalho, do PT, numa disputadíssima eleição em dois turnos. No primeiro turno vários candidatos se colocaram contra a famigerada aliança entre petistas e tucanos. Numa disputa acirrada entre Jô Moraes (PCdoB) e Leonardo Quintão (PMDB), o peemedebista foi ao segundo turno. Apoiado pelos comunistas e por diversas correntes políticas contrárias a aliança eleitoral, Leonardo Quintão perdeu as eleições. A vitória de Márcio Lacerda rompeu um longo período de construção do projeto popular e democrático na capital mineira. No interior do Partido dos Trabalhadores, mesmo com a vitória, a disputa entre as correntes internas chega às vias de fato, com rupturas, disputas públicas e divisões entre as principais lideranças do partido.

Em 2010, o presidente Lula, mesmo com excelente avaliação popular, não poderia mais disputar as eleições presidenciais pelo campo democrático popular, conforme prevê a Constituição Federal. Na visão de alguns mais afoitos, o projeto das elites mineiras estava próximo de ser alcançado. Porém, Aécio foi derrotado na disputa interna do PSDB pelo eterno presidenciável tucano, José Serra. O governador viu então distanciar o projeto de poder nacional, levando-o a romper com Fernando Pimentel e com o acordo de 2008. Lembrando que o acordo previa a ascensão de Pimentel rumo ao Palácio da Liberdade em 2010.

Dilma foi a candidata de Lula, venceu as eleições nacionais, mas foi derrotada nos dois turnos do colégio eleitoral de Minas Gerais. No primeiro, para a candidata Marina Silva, e no segundo, para o tucano José Serra. Era a primeira vez em dezoito anos que a Frente BH Popular perdia uma eleição na capital mineira. Setores da classe média, movimentos populares, sindicais e intelectuais, que tradicionalmente votavam na esquerda, desde o início dos anos 1990, desapontados pelos acordos de cúpula e pela fragilidade ideológica do Partido dos Trabalhadores, passaram a orientar seus votos para o campo liderado pelo governador Aécio Neves.

Não há dúvidas de que a crise política gerada pela aliança de 2008 influenciou negativamente as eleições ao governo do estado de Minas Gerais em 2010. A aliança PMDB, PT e PCdoB, que tinha na composição majoritária Hélio Costa e o vice Patrus Ananias, foi novamente derrotada pelo então inexpressivo Antônio Anastásia. O candidato de Aécio Neves e sua composição liberal conservadora, PSDB e seus aliados PSB, DEM e PPS, venceram novamente o pleito eleitoral. Nas eleições de 2010, o prefeito de Belo Horizonte apoiou em âmbito nacional a candidatura Dilma, porém em âmbito estadual fechou seu apoio ao candidato Aécio Neves para o Senado e Antônio Anastásia ao governo de Minas, demonstrando na prática os compromissos políticos e ideológicos assumidos no estado, principalmente com o neto de Tancredo Neves.

Segundo Ato

A derrota de 2010 ampliou a disputa interna no Partido dos Trabalhadores e consolidou a liderança de Aécio Neves em Minas Gerais. Contudo, mesmo entregando a Prefeitura de Belo Horizonte para Márcio Lacerda, o Partido dos Trabalhadores controlava grande parte das secretarias e espaços políticos administrativos do município. A administração municipal, mesmo com todas as contradições na gestão de Márcio Lacerda, avançou em obras federais licitadas em governos anteriores e em novas obras que vieram no bojo dos projetos de infraestrutura visando a Copa do Mundo de 2014. Nesse ambiente de prosperidade, fruto de uma intensa articulação de lideranças petistas com o governo federal, viabilizando novas obras para Belo Horizonte, acabou por posicionar a administração municipal em condições de excelente avaliação.

Porém, aumentavam nesse mesmo período as contradições da administração Márcio Lacerda em relação às políticas públicas de saúde, educação e moradia. Nesse cenário, o prefeito demonstrava seu completo descaso e falta de compromisso com os movimentos populares, sindicais, juventude. A postura sisuda e pouco polida e política do prefeito Márcio Lacerda acabou por ampliar sua rejeição entre setores organizados da cidade. Entre os diversos movimentos, podemos destacar o “Praia da Estação”, o movimento “Fora Lacerda”, movimento de moradia popular, etc.

Mas a Prefeitura de Belo Horizonte parecia não se importar com a rejeição popular e avançou cada vez mais no modelo de gestão concentrador e pouco democrático. A gestão Márcio Lacerda consolidou um modelo empresarial de administração pública. A administração pública municipal empreendeu um grande esforço de privatizar os espaços públicos e as políticas sociais. Muitos foram os projetos colocados em pauta pela administração com esses objetivos: PPPs (parcerias público-privadas) em varias áreas da administração, incluindo nesse universo saúde e educação, vendas de espaços públicos, expansão imobiliária especulativa, etc. O prefeito foi gradativamente incorporando o projeto de choque de gestão do governo estadual na administração municipal e se afastando do projeto popular democrático, em construção desde o início dos anos 1990 na capital.

Embora Roberto de Carvalho, do Partido dos Trabalhadores, fosse vice-prefeito da capital e de um governo bem avaliado, a relação entre ele e o prefeito aprofundava em contradições. A relação tensa acabou por culminar no rompimento do vice-prefeito com o prefeito Márcio Lacerda. No entanto, o rompimento teve pouco efeito prático porque nacionalmente o ministro Fernando Pimentel, aliado de primeira hora da presidenta Dilma, mantinha acesa a esperança de viabilizar seu projeto de governar o estado de Minas Gerais e que passaria necessariamente pelo êxito nas eleições de Belo Horizonte. O deputado federal Miguel Correia Junior era a carta na manga que tinha Fernando Pimentel.

Uma outra questão importante que envolvia as eleições municipais de Belo Horizonte de 2012 era a disputa entre PT e PSDB para a atrair Márcio Lacerda para um dos dois campos em disputa, o neoliberal de Aécio Neves, ou o campo democrático-popular de Dilma Rousseff. Esse cenário frágil e conturbado, de disputa interna no PT e da necessidade de atrair o PSB para o campo do governo federal, levou a presidenta Dilma a realizar vários gestos de aproximação ao prefeito da capital mineira. Seus afagos visava assim interferir diretamente na disputa com Aécio Neves e minar o apoio do prefeito Márcio Lacerda nas eleições de 2014 ao presidenciável tucano.

Foi também nesse cenário de disputa entre os dois projetos de país, um sob o comando petista e o outro sob o comando tucano, que o PCdoB decidiu participar do governo Márcio Lacerda. A presença dos comunistas visava colaborar com a administração pública municipal à frente da Secretaria de Esporte e buscava fortalecer o campo democrático e popular internamente na Prefeitura de Belo Horizonte. É importante lembrar que o Partido dos Trabalhadores controlava cerca de 70% da máquina pública municipal. Com esse gesto político, o PCdoB então indicava como tática a potencialização do campo do governo Dilma na gestão da capital mineira. A tentativa era impedir o avanço do PSDB e de demais partidos de oposição ao governo federal na administração pública de Belo Horizonte.

Com o advento do processo eleitoral, se iniciou a disputa pela apropriação da máquina da Prefeitura. A boa avaliação popular da administração fez aumentar a disputa entre PT e PSDB pelo comando da capital. Publicamente, a tensão entre os dois partidos para atrair Márcio Lacerda dizia respeito à chapa de vereadores e à coligação formal entre os partidos na chapa majoritária. Contudo, questões políticas e ideológicas do prefeito, disputas internas do PT, aproximação cotidiana do prefeito com seu padrinho Aécio Neves, questões administrativas, ruptura do prefeito Marcio Lacerda com movimento popular e sindical, levaram à divisão da combalida aliança de 2008. O PSB do prefeito Márcio Lacerda consolidava sua opção política e ideológica rumo ao PSDB, DEM e PPS, em detrimento ao campo nucleado por PT, PMDB e PCdoB.

Terceiro Ato

No último prazo para as definições das coligações, no limite das horas, a coligação PSB, PT e PSDB, acordada em 2008, era rompida. Estava selado o fim de um dos piores capítulos da política de Belo Horizonte. Imediatamente, o PT anuncia a indicação de Patrus Ananias à Prefeitura de Belo Horizonte. O senador Aécio Neves comemora a ruptura política; nos bastidores, trabalhou exaustivamente até sequestrar definitivamente Márcio Lacerda para seu projeto de poder. Naquele momento estava consolidada a disputa nacional, entre os dois campos, na cidade de Belo Horizonte. A direção nacional do PT imediatamente anunciou a presença de Lula e Dilma com o objetivo de derrotar Márcio Lacerda, um tucano no ninho socialista.

A movimentação nas outras siglas partidárias foi também intensa e ágil. O Partido Verde retirou a candidatura de Délio Malheiros e o indicou, contra a sua própria vontade, a vice na chapa de Lacerda. O DEM também retirou sua candidatura, em troca de cargos no governo estadual. O PPS seguiu os mesmos passos e, uma a uma, as pequenas legendas, controladas pelo Palácio da Liberdade, foram se incorporando ao projeto liberal-conservador de Márcio Lacerda. No campo da articulação da presidenta Dilma, três partidos somaram forças no sentido de derrotar a chapa social-tucana. O PMDB imediatamente definiu sua posição, devido à influência do vice-presidente Michel Temer, e de pronto indicou Aloísio Vasconcelos para a vice de Patrus.

Nesse mesmo sentido o PCdoB, a partir da sua direção nacional, apoiada pela direção municipal, tomou a justa e histórica posição de fortalecer o campo popular-democrático na cidade de Belo Horizonte. Ainda em apoio à chapa majoritária, se somou o PRTB, partido da base aliada da presidenta Dilma, unindo forças ao projeto nacional, em disputa nas eleições municipais de Belo Horizonte.

A composição no cenário da batalha eleitoral apresentou-se ainda quatro partidos identificados nacionalmente pelas posições mais radicalizadas no espectro político: PSOL, PSTU, PCO e PPL. Contudo, mesmo com o lançamento de seis candidaturas, a disputa desde o início prenunciava a polarização entre Márcio Lacerda e Patrus Ananias. A ruptura no último prazo para a formação da chapa, a postura pouco incisiva dos dois principais candidatos, a confusão política e ideológica provocada pela aliança de 2008, a ausência de debates públicos qualificados, a imprecisão das diferenças entre os dois programas para a cidade, a desconfiança da população e a ausência da militância nas ruas levaram as eleições para o campo da despolitização. As obras tocadas na cidade, em sua grande maioria financiadas pelo governo federal, colocaram em evidencia a gestão Márcio Lacerda e, em grande parte, definiram os rumo das eleições.

Contudo, a definição das eleições teve como principal fator o peso da máquina administrativa do governo estadual e da Prefeitura de Belo Horizonte. O volume de campanha era completamente desproporcional, reproduzindo nessas eleições municipais os mesmos artifícios utilizados nas eleições de 2010. Grande volume de pessoas contratadas; grande quantidade de material gráfico; controle de lideranças nas periferias da cidade; maior tempo de televisão e uma campanha maciça nos principais meios de comunicação da cidade em apoio a Márcio Lacerda.

Encerradas as eleições, a chapa encabeçada pelo prefeito Márcio Lacerda saiu vitoriosa com uma votação de 52% dos votos válidos. Patrus Ananias teve 41% dos votos, e os partidos nanicos, 7%. No entanto, o que chama a atenção no resultado eleitoral é a enorme abstenção no pleito, chegando ao percentual histórico de 33% da população em condições de votar. No resultado geral consolidado, o prefeito Márcio Lacerda foi eleito com pouco mais de 34% dos votos da população, indicando um alto índice de rejeição ao candidato vitorioso. Uma das hipóteses dessa ampla abstenção estaria relacionada com a confusão política e ideológica provocada pela aliança PT-PSDB, formatada na cidade desde 2006.

Finalizadas as eleições, configurou-se na cidade três campos políticos: 1 – PSB, PSDB, DEM, PV e PPS; 2 – PT, PCdoB e PMDB; 3 – PSOL, PSTU, PCO e PPL. O campo vitorioso caminha a passos largos para ser hegemonizado pelo PSDB. A gestão da Prefeitura tende a adquirir os mesmos contornos administrativos em curso no governo do estado nos últimos 10 anos, o famigerado choque de gestão. A ausência de diálogo com os setores organizados da sociedade tem se mostrado a tônica da administração Márcio Lacerda. O caminho escolhido pelo prefeito de seguir os partidos que se opõem ao governo Dilma tende a ser um caminho sem volta. As primeiras manifestações públicas de Márcio Lacerda indicam que a gestão municipal sofrerá grandes transformações e aponta para um rumo mais conservador na política e mais liberal na economia.

No campo da oposição, mais vinculado ao governo Dilma, as dificuldades não são pequenas. O Partido dos Trabalhadores, mesmo fragilmente unificado nas eleições municipais em torno da candidatura de Patrus Ananias, apresenta-se repleto de divisões e disputas internas. As questões partidárias levarão ainda um tempo até serem ajustadas. Superar as marcas deixadas pelas disputas internas será um grande desafio da direção municipal e estadual da legenda. No PMDB, as questões se apresentam na tradicional disputa pela cúpula partidária, pois os peemedebistas saíram derrotados nas eleições municipais. O PMDB saiu de quatro vereadores para apenas um eleito, sendo que este já anuncia sua saída das fileiras partidárias.

Já o PCdoB, que desde o início compreendeu a dimensão política que estava em disputa nas eleições de Belo Horizonte, saiu revigorado politicamente e fortalecido eleitoralmente, com a eleição de dois vereadores. O PCdoB terá grandes desafios no próximo período, como unificar o campo popular e democrático e, ao mesmo tempo, diferenciar sua ação e atuação das demais legendas. Quanto ao campo da esquerda oposicionista, há que se destacar a atuação do PSOL, que saiu fortalecido com uma importante votação na chapa majoritária, porém não elegendo nenhum vereador.

É nesse cenário de definições de campo que os partidos da base da presidenta Dilma deverão atuar no próximo período. Podemos afirmar que a chapa encabeçada por Patrus Ananias e apoiada pelos partidos da base de sustentação do governo nacional, mesmo derrotada eleitoralmente, saiu fortalecida politicamente, pois agora ficaram mais nítidos os campos políticos em disputa na capital das Alterosas. E a primeira disputa já tem data marcada: Dilma x Aécio Neves, a batalha das batalhas da população de Belo Horizonte, Minas Gerais e do Brasil em 2014. Não vacilar em hipótese alguma, esse o grande desafio dos partidos responsáveis pela construção do projeto de um Brasil popular e democrático. Não podemos esquecer que existe uma disputa entre dois campos antagônicos e nos temos lado nesta batalha.

* Gilson Reis é presidente do Sinpro-MG e vereador (PCdoB) eleito em BH no pleito municipal de 2012