Jaime Sautchuk: Apagão nacional

Os apagões ocorridos no ano passado e os que estão ameaçando ocorrer no momento são, em verdade, reflexos do apagão do próprio sistema brasileiro de energia elétrica. É um problema que vem de décadas e foi agravado severamente nos anos 1990, com a privatização da geração e até da distribuição de eletricidade no país.

Por Jaime Sautchuk*

Nenhum país de maior presença no mundo, nem mesmo os Estados Unidos, deixa nas mãos do setor privado áreas tão estratégicas para a vida nacional. Afinal, esta é uma questão de Estado. Basta observar que em guerras, por exemplo, quase sempre o primeiro intento do invasor é o bloqueio do fornecimento de energia.

As reuniões que estão ocorrendo esta semana em Brasília, em razão do baixo fluxo de água em rios importantes para o setor, têm caráter emergencial. Estão longe, portanto, de atacar o problema a fundo. Mudanças no próprio sistema exigirão verdadeira mobilização nacional em apoio ao governo, pois os interesses em jogo são gigantescos.

As recentes suspensões no fornecimento têm sido atribuídas, inclusive pela presidente Dilma Rousseff, a falhas humanas. Isso não deixa de ser verdadeiro, mas se pergunta o que está por detrás desses erros humanos. E a resposta é simples: o sistema de distribuição mal cuidado é que tem levado a interrupções no fornecimento.

A falha humana advém, no fim das contas, do pouco investimento na contratação, capacitação e condições de trabalho da mão de obra especializada. Há empresas que cuidam de extensas linhas e não têm um helicóptero sequer em operação no trecho. As revisões, quando são feitas, levam anos para voltarem a ocorrer. O resultado é óbvio.

As extensas linhas de transmissão de energia, especialmente na Amazônia, exigem permanente e trabalhosa manutenção, tanto nas torres e cabos, como nas chamadas faixas de servidão, que são aceiros de até 100 metros de largura, sob as linhas. Na região, a vegetação retoma rapidamente essas áreas de proteção.

A matriz energética brasileira, definida no Plano Nacional de Energia (PNE), criado há décadas e frequentemente readaptado, define a fonte hídrica como prioritária. Hoje, o barramento de rios supre 80% do consumo nacional, ficará em torno de 75% em 2016 e se manterá nesta faixa em 2030, pelas previsões oficiais.

A energia de fontes limpas (eólica, solar, marés, bioenergética…) continuará como secundária. A compatibilidade é viável, mesmo levando em conta que a de fonte biológica, por exemplo, depende da sazonalidade agrícola e também do regime de chuvas.

Os especialistas de instituições científicas, como os do COPPE-Rio e da Universidade de São Paulo, não se cansam de apontar soluções para o problema. Uma delas, por exemplo, se refere aos próprios rios. É a implantação de unidades produtoras em áreas em que não seja necessário o barramento de curso d’água. O próprio movimento da água move as turbinas. E isso parece grande novidade. Mas não é.

A primeira usina do rio São Francisco foi colocada em operação em 1913, pelo empresário Delmiro Gouveia, que teimou até a morte (assassinado de modo misterioso) em montar uma fábrica de linha de costura em Pedra, em Alagoas, cidade que hoje leva seu nome. Sua usina aproveitava só a força da cachoeira de Paulo Afonso, sem mexer no rio, e movia sua fábrica e a cidade inteira.

Ou seja, a conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente em 1992, a Rio-92, pregava que o desenvolvimento sustentável deve se assentar sobre o tripé do avanço econômico, ecologicamente não predatório e socialmente justo. São princípios endossados pelo Brasil.

As hidrelétricas em operação, em construção e previstas até o ano 2016 na Amazônia brasileira, juntas, somarão área inundada superior a 40 mil km², o que equivale ao estado do Rio de Janeiro. Isto, sem contar 15 usinas das bacias dos rios Araguaia e Tocantins.

A opção brasileira pela energia vinda dos rios competirá, assim, com a ocupação desordenada e o desmatamento na célere degradação da maior floresta tropical do mundo. São previstas pelo menos 12 usinas. Duas delas na margem Norte do Amazonas, nos rios Jari e Trombetas, em regiões bastante planas.

No aspecto social, a usina de Belo Monte, no Pará, que emprega perto de 15 mil pessoas, é um exemplo pouco exemplar.

A obra já começou a mudar a vida dos povos da floresta. Mas já mudou muito, também, a vida dos citadinos, como os de Altamira, a maior cidade da região, que tinha 100 mil habitantes no início dos trabalhos e hoje já passa dos 150 mil. São trabalhadores, mas são também espertalhões, prostitutas e gente da pior espécie que se aproveita de uma situação de fragilidade.

As forças de segurança locais, que já eram precárias, hoje significam zero. Os serviços de saúde e educação, nem se fala. Ademais, uma parte da cidade será alagada, e a população dali será transferida para outras áreas, ainda não definidas. Mesmo quem não ficar sob as águas, no entanto, terá outros motivos para ir para alguma periferia. O custo de vida é um exemplo.

Uma casa que há três anos era alugada por R$ 300, em Altamira, já custa cerca de R$ 2mil. O transporte urbano virou muvuca maior do que era e as crianças, meninas e meninos, sem escola nem mais o que fazer, e vendo o dinheiro correr, caem na prostituição ou na bandidagem.

No meio de tudo isso, uma coisa é certa: o Brasil tem capacidade de produção de toda a energia que precisa, com sobra até. Para fugir do apagão, porém, precisa dar um choque no sistema.

* Jaime Sautchuk é jornalista, escritor, colunista do Vermelho