Fiorentini: Do Manifesto de Córdoba até os dias atuais. Parte 1

Inicia-se o ano em que se completam 95 anos do Manifesto de Córdoba. Isso faz deste, um momento especial para resgatar e fortalecer os princípios desta grande mobilização estudantil. Vive-se, hoje, um momento em que as elites tentam promover o rechaço da política. Além disso, buscam descreditar a mobilização juvenil, e com isso convencer os estudantes de que não haveria sentido lutar em defesa da educação.

Por Mateus Fiorentini*


Devido a isso, deve-se afirmar que o Manifesto de Córdoba segue mais atual que nunca. Vivemos uma hora americana. No início do século 20 existiam, na Argentina, três universidades nacionais: a de Buenos Aires, Córdoba e La Plata.

Essa primeira se destinava, basicamente, a receber os filhos das elites portenhas. A Universidade de La Plata se configurava como uma primeira experiência de uma instituição de ensino superior moderna e atual. E, a Universidade de Córdoba representava o reduto do pensamento mais atrasado do período. Residiam ali os resquícios da intelectualidade colonial. É devido a isso que o Manifesto de 1918 começa dizendo: “Homens de uma república livre acabamos de romper a última cadeia que em pleno século XX nos atava a antiga dominação monárquica e monástica” (Manifesto Preliminar de Córdoba). A Universidade Nacional de Córdoba era uma instituição que possuía um conteúdo livresco, eclesiástico que nada tinha haver com o novo século que se iniciava. Assim, foi essa realidade com a qual se deparavam os estudantes. E, contra essa estrutura, velha e arcaica, que os estudantes se levantaram.

Liderados pela Federação Universitária de Córdoba os estudantes promoveram um conjunto de manifestações por toda universidade. De atos, assembleias, passeatas, ocupação de espaços públicos, entre outros consistiam a ação dos estudantes que questionava a estrutura da universidade. Diante das mobilizações estudantis, um conjunto de professores e funcionários, a maioria, se retira da universidade como represália. Contudo, a resposta dos estudantes foi não permitir que a universidade parasse. Desse modo, estudantes passaram a ocupar funções administrativas, passaram a gerir a universidade e, inclusive a dar aulas. “…o certo é que a auto docência (…) foi a atitude predominante numa juventude que desesperadamente buscava uma resposta” (Carlos Tünnermann Bernhein). Assim, aqueles que se retiraram com o objetivo de fazer a universidade parar tiveram suas intenções frustradas. E, quando retornaram à universidade, após intervenção do presidente Irigoyen, encontram uma instituição funcionando plenamente. Com essa ação presidencial inicia-se a discussão sobre um novo estatuto da Universidade e eleições para a reitoria. Dessa maneira, ao reestruturar os espaços político-administrativos os estudantes, que haviam comprovado sua capacidade em gerir a instituição, exigem espaços compartilhados e eleições livres.

Porém, se alguém conclui que o movimento de Córdoba se resumiu a reivindicação por compartilhar os espaços político-administrativos, se equivoca. O questionamento as estruturas políticas e filosóficas da universidade é parte da perspectiva maior dos reformistas de 18.

“Os métodos docentes estavam viciados de um estreito dogmatismo, contribuindo para manter a Universidade apartada da Ciência e das disciplinas modernas. As lições enclausuradas na repetição interminável de velhos textos amparavam o espírito de rotina e submissão” (Manifesto Preliminar de Córdoba).

Os estudantes questionavam o caráter retrógrado do conteúdo produzido na universidade. Por isso a bandeira da liberdade de cátedra teve papel central no programa reformista estudantil de 1918. Por conseguinte, os estudantes defendiam uma universidade que produzisse um conhecimento que dialogasse com o momento histórico atual. Pautavam a necessidade de produzir um conhecimento a serviço da transformação da sociedade. “As universidades tem chegado a ser assim o fiel reflexo dessas sociedades decadentes, que se empenham em oferecer o triste espetáculo uma imobilidade senil” (Manifesto Preliminar de Córdoba). Esse era o cenário da maioria das universidades em toda a América Latina, como afirma o professor Carlos Tünnermann Bernhein:

“As universidades latino-americanas, enquadradas no molde profissionalista napoleônico e arrastando no seu ensino um pesado lastro colonial, estavam longe de responder ao que a América Latina necessitava para ingressar decorosamente no século XX (…)” (BERNHEIN, Carlos Tünnermann: História de la Universidad em América Latina; De la época colonial a la reforma de Córdoba.)

Esse dado revela outra característica do movimento estudantil reformista de 1918. Eles reivindicavam uma universidade a serviço, não somente dos interesses do povo argentino. Defendiam uma universidade latino-americana.

O forte questionamento ao caráter colonial da estrutura política e pedagógica da universidade revela outro conteúdo central do movimento de Córdoba. Os estudantes lutavam por uma universidade aberta as novas idéias da modernidade. Contudo, o movimento reformista de Córdoba ocorre em meio a I Guerra Mundial, onde as distintas formas de imperialismo disputavam o controle do mundo. Esse cenário provoca nos estudantes o forte sentimento de que a universidade devia deixar de respirar ares estrangeiros. Com isso, gerar algo genuíno, criar uma cultura própria que não seja simples reflexo dos interesses europeus ou norte-americano. Com isso o movimento assume um forte caráter anti-imperialista e o latino-americanista.

O movimento estudantil cordobes de 18 acreditava que a universidade deveria acompanhar essa nova sociedade que surgia a inícios do século XX. Uma sociedade marcada pelo avanço republicano, um processo de industrialização ainda incipiente, porém, suficiente para gerar um movimento operário capaz de movimentar a vida política das cidades. Nesse sentido, os estudantes defendiam que a universidade possuía papel central na libertação e no desenvolvimento nacional. Entretanto, acreditavam que essa libertação e desenvolvimento, esse pensamento genuíno, não se bastava na Argentina. Deveria ser latino-americano. É nesse sentido que o manifesto é dirigido aos “homens livres da América do Sul”, que “estamos vivendo uma hora americana” e conclui convocando aos “companheiros da América toda e incita a colaborar na obra de liberdade que se inicia”.

Por fim, resgatar e fortalecer os princípios da Reforma de Córdoba é fortalecer o papel da participação estudantil. As reivindicações do Manifesto de Córdoba foram os pilares das plataformas de luta em defesa da educação até os dias de hoje. Liberdade de cátedra, paridade nas eleições e conselhos, uma universidade que produza um conhecimento a serviço do desenvolvimento e do povo são bandeiras atuais em pleno século XXI. Além disso, a construção de uma universidade que coloque seus conhecimentos em prática a serviço da sociedade, a extensão universitária são elementos presentes no quotidiano atual. Por isso resgatar a Reforma de Córdoba é afirmar que uma universidade precisa ser pensada em sua totalidade. Isso significa pensá-la integrada ao projeto de desenvolvimento nacional e latino-americano e que essa é a saída para enfrentar o imperialismo. É afirmar que a luta em defesa da educação é uma luta antes de tudo política. E que quem promoveu esse feito que pauta a luta educacional até os dias atuais foi o movimento estudantil.

*Mateus Fiorentini é secretário executivo da Organização Continental Latinoamericana e Caribenha de Estudantes (OCLAE)