As lutas no mundo árabe à luz do feminismo anticolonial

Embora a batalha contra o machismo, o sexismo, a opressão, pela equidade de gênero seja cotidiana para as mulheres, o 8 de março, Dia Internacional da Mulher, reveste-se de um momento especial para reiterar essas lutas e mostrar sua universalidade. Aqui, como no mundo árabe, mulheres marcham por seus direitos.

Por Soraya Misleh*

Ali, vale salientar, um movimento bastante presente entre elas, que emerge com força, é do chamado feminismo anticolonial, que tem questionado o próprio regime capitalista que mantém sua exploração, ao exigir mudanças na economia, bem como o imperialismo e o colonialismo.

Na Tunísia, em que teve início a onda de revoluções no mundo árabe, ao final de 2010 – levando, no começo do ano seguinte, à queda do ditador Ben Ali -, as mulheres não abandonaram seus postos. Pelo contrário, sua presença foi marcante no ascenso resultante da insatisfação generalizada, inflamado com o assassinato em 6 de fevereiro último do líder de oposição Chocri Belain. Ao continuarem a se manifestar para que se façam cumprir as tarefas da revolução, elas estão lutando por seus direitos também. No Dia Nacional da Mulher na Tunísia, em agosto de 2011, suas vozes protestavam contra a possibilidade de perda de conquistas históricas, já que no projeto constitucional o objetivo seria instituir a complementaridade dos sexos, não a equidade de gênero. “As mulheres tunisianas são uma parte inteira, iguais aos homens, são independentes e trabalhadoras. Nunca aceitaremos ser consideradas complementares a eles”, teria afirmado uma jovem engenheira presente ao ato, segundo divulgado na imprensa internacional. O projeto seria a evidência de tentativa de captura do processo revolucionário, num país em que as mulheres conquistaram uma legislação bastante avançada. Para se ter uma ideia, o aborto ali é legal e a igualdade de direitos é garantida em estatuto desde 1956.

No Egito, desde o início do processo em 25 de janeiro de 2011 – que levou à queda do ditador Hosny Mubarak em 11 de fevereiro do mesmo ano – as mulheres estão na linha de frente, enfrentando uma arma poderosa, típica dos tiranos em relação ao gênero feminino: a violência sexual. Porém, como afirmou em entrevista à imprensa a ativista feminista egípcia Nawal Saadawi, as mulheres têm tido ganhos.

“Nós escutamos sobre aquelas que venceram nos tribunais contra a realização pelos militares dos testes de virgindade (aos quais presas pelo regime eram submetidas).” Além disso, ela aponta que a fragmentação do movimento feminista levada a cabo sob a ditadura agora pode ser revista. Segundo afirma, essa divisão com o objetivo de dominar foi levada a cabo pela então primeira-dama Suzanne Mubarak, que queria liderar a organização de mulheres, “como todas as rainhas e esposas de presidentes no resto dos países árabes”.

Sob seu comando, lamenta Saadawi, foram fundadas várias ONGs, ou pelo governo ou com dinheiro estrangeiro. Agora, a ativista vislumbra a possibilidade de criar uma União de Mulheres Egípcias, independente, para organizar a luta.

Derrubando estereótipos

Seria o feminismo anticolonial contemporâneo, o qual questiona movimentos de mulheres que se baseiam na contradição inventada Oriente-Ocidente para ditar regras de comportamentos às árabes e muçulmanas e, portanto, em ideias que mantêm o colonialismo e o imperialismo.

Entre essas, as de que as ditas “ocidentais” seriam a civilização a ser levada àqueles povos atrasados. Mostra disso são feministas que veem na vestimenta a opressão, quando pode ser uma característica cultural. Caso específico do véu islâmico, que, em si, não significa submissão. Tanto é que mulheres na Turquia e na França, por exemplo, protestaram quando tentaram lhes impedir o direito de cobrir os cabelos. O problema não é o uso, mas a imposição. Contra essa, sim, deve-se lutar contra.

De novo é Nawal Saadawi quem ensina, desta vez em seu único livro traduzido para o português, intitulado “A face oculta de Eva – as mulheres do mundo árabe”: a religião tem sido usada como meio de dominação, mediante distintas interpretações, de modo a favorecer o grupo hegemônico e manter a opressão de classe.

Portanto, é questão política, não tem a ver com religião, menos ainda com os preceitos indicados no Islã.

Tal representação está a serviço de determinados interesses tanto quanto a invisibilidade da luta histórica das mulheres. Não há nenhuma novidade na participação feminina nesses processos revolucionários. Seu protagonismo nas batalhas anticoloniais e anti-imperialistas é histórico em toda a região.

No Egito, por exemplo, como conta Saadawi, as mulheres foram as primeiras a deflagrar greves, ocupar fábricas e marchar por direitos, ainda no início do século XX. Na Palestina, foram pioneiras em protestar contra a instalação dos primeiros assentamentos sionistas o final do século XIX, com fins coloniais – e têm se colocado há mais de 60 anos na linha de frente contra a ocupação israelense.

Ela salienta: “As árabes mostraram resistência ao sistema patriarcal centenas de anos antes que as americanas e europeias se lançassem a essas mesmas lutas.” Sistema esse que passou a predominar a partir do surgimento da noção de propriedade privada e divisão de classes, como ensina em sua obra.

Em tempos ancestrais em que predominava o nomadismo e a agricultura de subsistência, as mulheres detinham a igualdade em questões sociais, econômicas e nas esferas públicas. Diante disso, Saadawi é categórica: “Enquanto os assuntos do Estado ou do poder administrativo forem delegados à mulher dentro de uma estrutura social de classes, baseada no capitalismo e no sistema familiar patriarcal, homens e mulheres hão de permanecer vítimas da exploração.

” Mudar esse estado de coisas, ao que o feminismo anticolonial é fundamental, mantém-se na ordem do dia no mundo árabe.

*Soraya Misleh é jornalista, membro da diretoria do ICArabe, da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Mopat (Movimento Palestina para Todos)