Le Petit Haiti: cidade chilena concentra imigrantes haitianos

Menos de 20 há dez anos, os haitianos atualmente já são quase quatro mil em todo o Chile. A maioria vem da República Dominicana, entusiasmados pelas promessas de emprego e prosperidade, mas que logo são abandonados à própria sorte em um país de clima frio e com pouca receptividade aos novos moradores.

Por Victor Farinelli*, em Opera Mundi

Entre 2009 e 2011, entraram 2,6 mil novos haitianos no país sul-americano, contra pouco mais de 700 saídas. Somente em 2011, foram 1.056 os que conseguiram ficar em terras andinas, entre os 1.369 que chegaram.


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Há muitas razões para o fenômeno, mas um dos principais é a atuação de quadrilhas de tráficos de imigrantes. Embora muitos haitianos que vivem na América do Sul tenham passado antes por países como Peru, Argentina e Brasil, o grosso do fluxo para o Chile veio diretamente da República Dominicana. De lá operam pelo menos duas quadrilhas que os levam diretamente a Santiago.

Segundo a PDI (Polícia de Investigações, equivalente à Polícia Civil brasileira), nos últimos cinco anos foram realizadas sete detenções relacionadas às quadrilhas de tráfico de haitianos. Cristíán Lucero, assessor de comunicações da PDI, afirma que os envolvidos fazem parte de dois bandos diferentes. “Pelo menos uma delas operou também em outros países, como o Brasil. Em colaboração com a Polícia Federal brasileira e de outros países, além da própria polícia da República Dominicana, estamos desmontando essa conexão”, explica Lucero.

De forma legal ou não, fato é que os haitianos já deixaram de ser uma novidade no Chile. De acordo com o Serviço Nacional de Imigração, a onda de imigração haitiana já é comparada à de colombianos e equatorianos – numerosas.

Le Petit Haiti

O ponto de aglutinação desses caribenhos é a zona central do país, em especial Quilicura, município na zona noroeste da Grande Santiago. Lar do maior parque industrial do país, a cidade conta com quase três mil haitianos legalizados, segundo dados da Embaixada do Haiti no Chile.

Quilicura fica próxima do aeroporto internacional de Pudahuel, o maior do país, mas é desconhecida para a maioria dos estrangeiros. O PDI se questionou sobre a preferência, pois muitos deles chegavam dizendo vir por motivos turísticos. Diferente dos haitianos de bairros do centro de Santiago, que chegam ao Chile por redes de tráfico, os de Quilicura também são estimulados por parentes ou amigos.

Os pioneiros dessa comunidade lembram dos tempos difíceis. Ally Lydiems, morador da cidade desde 2007, trabalhou por quatro anos como soldador e pintor, e inspirado pela chegada de novos conterrâneos, abriu o próprio negócio. Seu salão de beleza era exclusividade da comunidade, mas hoje atende também chilenos e outros imigrantes, todos interessados em penteados afro. “Sabia que teria um público cativo”, conta ele, comentando que a exemplo dele outros estabelecimentos haitianos foram sendo inaugurados.

A imigração haitiana transformou a cidade e introduziu a presença dos negros nas ruas, algo incomum no Chile. A relação, apesar de não ser conflituosa, é distante. Em comparação com outros imigrantes, como peruanos e colombianos, os haitianos relatam dificuldade de integração dos chilenos, descrevendo uma “barreira social”.

Comércio haitiano

Antes do crescimento do fluxo imigratório, os haitianos do Chile frequentavam principalmente estabelecimentos de peruanos, sobretudo centros telefônicos, devido ao preço baixo. Hoje esse cenário começa a mudar.

O ex-professor de literatura francesa Youry Fillien, de 35 anos, abriu o restaurante La Belle Etoile, especializado em comida típica haitiana. Ele também vem incentivando outras iniciativas para reunir compatriotas, entre as quais a criação, em 2009, da AESCFCH (Associação Educativa e Sociocultural Flambeau de Chile). Trata-se de uma entidade que auxilia recém-chegados, com dicas de moradia e emprego, além de servir de referência para o fomento da cultura haitiana na cidade.

Fillien desembarcou em 2007 e explica a preferência por Quilicura. “Santiago em si é uma cidade difícil para os imigrantes, não só para os haitianos. Em Quilicura o custo de vida não é tão alto e não existe a hostilidade que se sente no centro”, diz.

“A mais organizada do mundo”

A desconfiança dos haitianos no Chile com a embaixada do país-natal é frequente, não sendo raro encontrar aqueles que dizem não ter nenhum contato – sobretudo porque, segundo os que conhecem a realidade dos imigrantes em diferentes países, nenhuma missão consular do país entrega ajuda efetiva.

A Embaixada do Haiti em Santiago está localizada em Las Condes, um dos bairros nobres da capital, a quilômetros de distância de onde vive a maioria dos compatriotas. Até 2009, os atendentes sequer sabiam falar francês. Porém, a mudança se deu com a chegada do novo embaixador Jean-Victor Harvel, que além de aperfeiçoar os serviços consulares, também começou a atuar junto às comunidades.

“Os haitianos que chegam ao Chile não sabem o que encontrar, mas os que já estão aqui são muitos, e estão capacitados para ajudá-los”, afirma Harvel, que impulsionou a criação de diversos centros comunitários em Santiago e em Quilicura. Seu objetivo é ambicioso: “quero que a do Chile seja a comunidade haitiana melhor organizada do mundo”.

O diplomata trabalhou na Embaixada do Haiti em Brasília entre 1996 e 2001. Desde então passou por missões em outros países da região, e diz que desde meados da década passada, os haitianos começaram a olhar para esta região com outros olhos.

“Talvez tenha sido o contato com os militares chilenos e brasileiros que os fez pensar nesses países como alternativas a destinos como França e Canadá, embora esses continuem sendo os mais buscados ”, comenta Harvel.

O diplomata prevê um futuro melhor para os imigrantes: “somos muitos. Os recém-chegados não estão sozinhos e estamos nos organizando melhor em um país que aos poucos vai perdendo aquela estranheza dos primeiros anos. Há motivo para esperança”.

*Victor Farinelli é correspondente da Opera Mundi no Chile
**Título original: "Le Petit Haiti": cidade chilena concentra recente onda de imigração haitiana