Vannucchi é anistiado; família de Herzog recebe novo atestado

Depois de mais de uma hora lendo relatórios em voz alta e debatendo as atrocidades cometidas pela ditadura (1964-85) contra o estudante Alexandre Vannucchi Leme, o grupo liderado pelo presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, se levanta de uma só vez. A plateia imita o gesto. Chegou um dos momentos mais esperados pelos familiares do jovem assassinado pelo regime militar em 1973.

Familiares Vannuchi - Marcelo Camargo/ABr

"Hoje (15) declaramos Alexandre Vannucchi Leme anistiado político brasileiro, e pedimos desculpas públicas pelos erros que o Estado cometeu contra ele, contra toda a família, seus amigos e contra a causa da justiça social no Brasil."

As palmas foram inevitáveis, bem como as lágrimas – que já eram esperadas nos olhos de primos e irmãos, mas que também surpreenderam a Paulo Abrão. Num soluço, o presidente da Comissão de Anistia conseguiu segurá-las e manter o protocolo segundos antes de anunciar oficialmente a reparação histórica. Alexandre Vannucchi Leme foi assassinado há exatos 40 anos nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações para Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo.

Na época, a unidade de repressão do regime era comandada pelo coronel Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça paulista como "torturador". Após o crime, o corpo de Alexandre foi levado ao cemitério de Perus, na zona norte da capital, e enterrado com cal virgem, para acelerar a decomposição e apagar qualquer evidência das torturas que sofrera. Na sepultura, nenhuma informação sobre sua identidade.

Os pais do estudante, natural de Sorocaba, no interior do estado, depois de procurarem em delegacias, receberiam a informação de que os restos do filho jaziam no túmulo como indigente. Penariam até conseguir sepultá-lo dignamente em sua cidade natal. Uma das versões oficiais dava conta de que Alexandre era um "terrorista" filiado à Aliança Libertadora Nacional (ALN) morto após sofrer um atropelamento enquanto fugia das forças de segurança. Outra hipótese dizia que o estudante se suicidara na prisão. Contudo, testemunhos de ex-presos políticos sempre defenderam a tese de que o jovem fora torturado e morto no calabouço da ditadura. Hoje, o Estado brasileiro reforçou essa versão ao anistiá-lo.

Responsabilidades

"A responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Alexandre Vannucchi Leme já havia sido reconhecida pela Comissão de Mortos e Desaparecidos", lembra Paulo Abrão. "Agora, o Estado reconhece todo o ambiente persecutório ao qual estava submetido, e que o levaram àquela situação em que o regime militar o assassinou." De acordo com o presidente da Comissão de Anistia, o reconhecimento de Alexandre Vannucchi Leme como anistiado, ainda que post-mortem, é mais um passo rumo ao esclarecimento da história.

A etapa seguinte será revelar os responsáveis por torturá-lo e matá-lo. Antes disso, porém, os familiares de Alexandre, seguindo o exemplo dos parentes do jornalista Vladimir Herzog, vão ingressar com um pedido de retificação do atestado de óbito do estudante. "Queremos que constem as reais causas da morte e o local onde foi morto: não atropelado na rua, mas nas dependências do DOI-Codi, sob tortura", afirma Maria Cristina Vannucchi Leme, irmã de Alexandre. "Faz toda a diferença viver em democracia."

A cerimônia fez parte da 68ª Caravana da Anistia e teve lugar no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), na zona oeste da capital, mesmo prédio onde Alexandre estudava antes de ser sequestrado e morto pelo regime. No local foi instalada uma placa comemorativa em alusão à sessão. Estiveram presentes ex-colegas de faculdade do jovem, que até hoje, todos os anos, se reúnem no mês de março para lembrá-lo. A memória de Alexandre também permanece viva no movimento estudantil uspiano, uma vez que o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da universidade leva seu nome.

Resquícios

Por isso, representantes da entidade aproveitaram para lembrar que resquícios das leis que possibilitaram sua prisão, em 1973, ainda permenecem vigentes no campus. Um deles é o Código Disciplinar da USP, promulgado nos anos 1970, que recentemente possibilitou um processo movido pela administração da universidade contra 72 estudantes por formação de quadrilha. O motivo: terem ocupado o prédio da reitoria em protesto pela detenção de dois alunos flagrados pela polícia fumando maconha no campus – algo que não ocorria há anos.

"Fosse antigamente, seriam chamados de terroristas", comparou Adrián Fuentes, diretor do DCE. "Não podemos mais tolerar que haja pessoas perseguidas politicamente. A universidade que lutou tanto e foi palco das batalhas contra a ditadura ainda não é democrática." Fuentes se referiu ainda à resistência do reitor da USP, João Grandino Rodas, em permitir a instalação de uma Comissão da Verdade dentro da instituição para apurar a colaboração de dirigentes e professores com o regime, bem como as perseguições contra membros da comunidade acadêmica que se opunham à ditadura.

Pouco antes, o presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Daniel Iliescu, reafirmou o compromisso dos universitários brasileiros com a reparação da memória. "Nós, que ontem morremos; nós, que ontem tivemos nossa morte anunciada nos jornais pelo governo como atropelamento de um terrorista; nós, que apenas depois de 10 anos pudemos ser enterrados; e nós, que depois de 40 anos vencemos hoje mais uma batalha, não estamos satisfeitos e venceremos outras batalhas rumo à verdade, à justiça e à memória", expressou, fazendo referência aos abusos cometidos contra Alexandre Vannucchi Leme.

Democracia

Foi o discurso mais inflamado e aplaudido da jornada, que, na visão do presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, também serviu para marcar uma mudança no conceito de anistia. "Se no passado a anistia significou um ato pelo qual o Estado perdoava as pessoas que ele mesmo havia criminalizado pela Lei de Segurança Nacional, hoje a anistia significa um gesto de desculpas, de reconhecimento público e de reconhecimento ao legítimo direito de resistência de pessoas como o Alexandre diante do ambiente repressivo."

Herzog

Ainda durante a cerimônia na USP, a família de Vladimir Herzog recebeu o novo atestado de óbito do jornalista, torturado e morto nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (:DOI-Codi), em 1975, durante a ditadura militar. O novo atestado aponta como causa da morte lesões e maus-tratos sofridos por Herzog durante interrogatório no DOI-Codi, órgão ligado ao Exército. Na versão anterior, sustentada pelo Exército na época, a causa apontada foi asfixia mecânica por enforcamento, indicando que o jornalista teria cometido suicídio.

O filho do jornalista, Ivo Herzog, disse que a primeira verdade oficial sobre a morte de seu pai foi o enterro, porque, de acordo com a tradição judaica, quando a pessoa se suicida, deve ser enterrada junto ao muro do cemitério, o que não aconteceu devido à coragem do rabino Henry Sobel, que foi contra a versão de suicídio. “Hoje, tendo um documento oficial do Estado que relata como meu pai morreu, mostrando que ele foi assassinado, desmontamos a versão criada na ditadura e temos um documento expedido por um juiz, dizendo que aquilo é mentira."

No entanto, ressaltou Ivo Herzog, "há mais coisas que precisam aparecer, como quem foram os mandantes, os agentes". É preciso investigar o crime em si, destacou.

Informações da Rede Brasil Atual