Debate sobre Marx e O Capital é realizado em São Paulo

Na tarde da sexta-feira passada (22), ocorreu o debate sobre os estudos d’O Capital no Brasil, no âmbito do seminário "Margem Esquerda — Marx e O Capital", com as presenças de Emir Sader (sociólogo), João Quartim de Moraes (filósofo), José Arthur Giannotti (filósofo) e Roberto Schwarz (crítico literário), mediado pela professora e pesquisadora Sofia Manzano. 

Por Osvaldo Bertolino, do Portal Maurício Grabois


O evento, realizado pela Boitempo Editorial em parceria com o Sesc, com apoio da Fundação Maurício Grabois, Fundação Lauro Campos, Fundação Rosa Luxemburgo e FAU-USP, ocorreu no Sesc Pinheiros, na cidade de São Paulo.

Os debates começaram com a exposição de Roberto Schwarz. Ele disse que teve a sorte de participar de um momento de apreciação crítica do marxismo, referindo-se a um grupo que começou a estudar O Capital, a partir de 1958, na Faculdade de Filosofia. Ele elogiou o grande público presente no Sesc Pinheiros, interessado na obra de Marx.

O debate teve como ponto alto a polêmica entre José Arthur Giannotti e João Quartim de Moraes sobre a essência do pensamento de Karl Marx. A preocupação quanto à forma de ler Marx e por que estudar sua obra está sempre presente, na visão de Giannotti. Segundo ele, O Capital é fascinante; o leitor fica espantado ao ler, por exemplo, a parte sobre a acumulação de capital, também chamada de “acumulação primitiva”. São capítulos de uma grandeza de reconstrução histórica que espanta qualquer pessoa, enfatizou.

Vulgata marxista

No terceiro volume, disse Giannotti, o processo de alienação da mercadoria se explicita e o leitor fica extasiado diante da descrição de como o capital financeiro se desliga do movimento social e do próprio capital. Ele afirmou que teria de retomar o capítulo sobre o valor para se apoiar nele e desenvolver algumas ideais. Antes, ressalvou que era preciso não esquecer que O Capital é um livro inacabado, fechado por Friedrich Engels. E que está dentro da escrita de Marx uma ideia de história muito peculiar, adaptada do hegelianismo. Para Giannotti, houve uma simplificação dessa ideia pelo que ele chamou de “vulgata marxista” — uma alusão aos métodos de estudo e difusão da teoria de Marx com matriz na União Soviética.

Ele disse que para a “vulgata marxista” essa ideia partiria do comunismo primitivo, quando não haveria propriedade privada dos meios de produção, passaria por uma evolução que instalara a luta de classes e, finalmente, chegaria à configuração de uma contradição que seria superada por uma sociedade sem classes, terminando a pré-história para entrar na história de verdade. Trata-se, segundo Giannotti, de um esquema com uma parte conceitual hegeliana que está muito presente em vários momentos da escrita de Marx, um conceito formado por movimentos. Tanto que quando se quer pensar o conceito de Marx em Hegel, é bom pensar em gênero e espécie, exemplificou.

Segundo Giannotti, Marx não queria apenas escrever um livro teórico. Basta ler a última “Teses sobre Feuerbach” para saber que ele queria transformar o mundo, lembrou. E esse momento de transformação foi realizado de uma maneira muito extraordinária, disse Giannotti, porque ele inspirou vários movimentos sociais e a Revolução Russa. E a partir dela, em particular depois que a Revolução se fechou na Terceira Internacional, o marxismo-hegelianismo de Marx e Engels se tornou o pai da Revolução, quando o marxismo se transformou em “vulgata”.

Manuais marxistas

De acordo com Giannotti, a partir dali a maioria dos que estudavam Marx liam manuais. Tiraram da análise de Marx a explicação sobre como funcionam os modos de produção e em particular como é o modo de produção capitalista, algo “substancial”, substituido por uma teoria do conhecimento. E, avaliou, quando o marxismo se tornou na “vulgata marxista”, uma teoria do conhecimento, foi um momento obscuro da inteligência do século XX. Em termos físicos, por exemplo, disse Giannotti, falando na concepção, Engels também entrou na “besteira” de pensar na dialética da natureza, para a qual a noção de contradição seria possível.

No Brasil, Giannotti citou o caso de Caio Prado Júnior, segundo ele um historiador extraordinário, que adotou o método da “vulgata marxista”. Para ele, esse método impediu a percepção de Marx como um clássico, que entraria para o patrimônio da humanidade. Giannotti afirmou que Marx sempre foi lido das mais diferentes maneiras. Citou que na passagem do século XIX para o século XX existiram leituras de Marx grandemente diferenciadas, como na Alemanha, onde Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo tinham interpretações bem diferentes. Citou também a União Soviética, onde havia a leitura de Vladimir Lênin e a de Nikolai Bukharin. Na Itália e na França igualmente haveria leituras díspares. Mas todas elas recorriam a Hegel, de uma maneira diferente.

Segundo Giannotti, essa recorrência a Hegel é claramente percebida para quem se detém no primeiro capítulo d’O Capital. Do ponto de vista da economia, afirmou, o primeiro capítulo se refere basicamente à teoria do valor-trabalho. Ele explicou que Marx faz uma objeção a David Ricardo, de suma importância: o economista britânico não entendia que o valor é uma substância, não simplesmente um sistema de relação entre valor de troca e valor de uso. Há uma coisa a mais. Obviamente, disse Giannotti, Marx estava recorrendo à concepção hegeliana de substância.

Marxismo e comunismo

João Quartim de Moraes disse que o marxismo entrou no Brasil na bagagem do comunismo. Esse fenômeno, essa inversão, não foi exclusivo, mas uma peculiaridade da história das lutas sociais brasileiras, afirmou. Segundo ele, o mesmo não ocorreu, por exemplo, nos vizinhos do Cone Sul. Na Argentina, para citar o caso mais nítido, enfatizou, o pensamento marxista havia desembarcado bem antes. Na última década do século XIX, informou Quartim de Moraes, os socialistas de lá fundaram o seu próprio partido. E um desses fundadores foi o primeiro tradutor d’O Capital para o espanhol.

Dessa peculiaridade brasileira de que o comunismo veio antes do marxismo, disse Quartim de Moraes, decorre um período para que a obra de Marx começasse a ser estudada de modo aprofundado, quando O Capital começou a ser lido com rigor teórico. Não só por Caio Prado Júnior, mas também por Nelson Werneck Sodré e, um pouco mais adiante, por Jocob Gorender e outros, lembrou. Eles se serviram do aparelho conceitual marxista em debates importantes sobre o programa revolucionário brasileiro, observou João Quartim de Moares.

Ele citou como exemplo o V Congresso do Partido Comunista do Brasil (PCB), quando houve debates profundos sobre a questão agrária, que levaram a um conhecimento, à própria apropriação teórica do marxismo por parte de muitos dos intelectuais comunistas que dele participaram. Essa experiência teórica, afirmou Quartim de Moares, depois seria limitada e bloqueada com a repressão dos anos de chumbo.

Quando ela retornou para o debate dos movimentos sociais era um momento em que os comunistas eram forças secundárias; o principal partido de esquerda era o Partido dos Trabalhadores (PT) que, embora nunca o tenha rejeitado, o marxismo não estava em sua prioridade teórica. Segundo Quartim de Moares, esse interregno não exerceu nenhum efeito de atrofia na leitura d’O Capital. Ele disse que via na nova geração um interesse muito grande na obra de Marx e sua leitura se espalhou, assim como a cultura marxista.

Filosofia em Lênin

Quartim de Moares lembrou a presença de Marx no mundo acadêmico, mas enfatizou que ao mesmo tempo há uma injustificável ausência de Lênin. A firmeza com que o líder da Revolução Russa defendeu a posição materialista em filosofia, embora não fosse filósofo profissional, merecia ser ressaltada, afirmou. E sem a teoria do imperialismo não se compreende o século 20, simplesmente, disse Quartim de Moraes.

Para ele, colonialismo e imperialismo são termos chaves para a história do século 20 e começo do século 21. Por iniciativa de um nome que “não posso citar aqui”, destacou, o famoso dístico “Proletários do mundo inteiro uni-vos!” se transformou em “Proletários e povos coloniais do mundo inteiro uni-vos!”. Essa foi uma mudança fantástica, avaliou.

A União Soviética, apesar de vitoriosa em muitas questões, acabou destruída e os soviéticos derrotaram o nazismo, comentando que a versão dominante propagada por Hollywood dá conta da derrota da Alemanha nazista com o desembarque das tropas ocidentais na Normandia em 1944, uma falsificação da história. Naquele tempo, a União Soviética já havia destroçados os nazistas em Stalingrado e na batalha de Kursk, a maior de toda a história, informou. “De modo que com todos os defeitos da União Soviética, eu acho que foi um desastre para a humanidade o desastre que a destruiu”, concluiu.

Desequilíbrio do capitalismo

Emir Sader retomou o argumento de Quartim de Moraes para dizer que sua visão coincidia com o conceito de imperialismo teorizado por Lênin. A hegemonia americana e a modalidade exacerbada do capitalismo neoliberal constituem outro elemento essencial para entender o mundo de hoje, disse ele. Com o fim da Guerra Fria, afirmou, Marx foi assassinado novamente. Por uma quantidade enorme de razões, bem ou mal historicamente ele estava identificado com aquele socialismo que naufragou, disse Emir Sader. Difundiu-se que a partir dali o capitalismo não teria crise e estava identificado com dinamismo, eficácia, bem-estar etc.

Foi necessário chegar a crise de 2008 para que outra palavra fundamental identificada com Marx voltasse à baila, e que descreve o capitalismo como nenhuma outra: crise. Já no Manifesto do Partido Comunista Marx e Elgels fizeram o reconhecimento formidável da capacidade extraordinária do capitalismo de desenvolver as forças produtivas e demonstrou sua incapacidade de distribuir renda para absorver a produção, comentou. A crise do capitalismo é estrutural, porque há um desequilíbrio entre produção e consumo, como demonstrou Marx e Engels, e foi isso que voltou a acontecer com a crise atual.

Emir Sader comentou também que em geral o neoliberalismo dizia que a economia deixou de crescer pelas excessivas regulamentações. Todo ideário neoliberal pode ser unificado na defesa da desregulamentação, afirmou, com a ideia de que o capital voltaria a investir e a economia cresceria para beneficiar a todos. Mas esqueceram da tese de Marx de que o capital não foi feito para produzir, mas para acumular, destacou. Desregulamentar significa transferir uma quantidade gigantesca de capitais do setor produtivo para o setor especulativo, o setor financeiro, observou.

Crítica científica

Com esse dado, aparece a força extraordinária de Marx, sua explicação dos mecanismos clássicos de acumulação para as finanças, afirmou Sader. Para ele, o único aspecto permanente do marxismo é o método; sua readequação histórica é diferenciada, comentou, complementando que o horizonte de reflexão do marxismo hoje em dia é muito mais claro pela característica que assume o papel do Estado. Ele citou o caso da destruição do Estado de bem-estar social na Europa — a maior construção civilizatória da história dos “trinta anos gloriosos da Europa” —, que está sendo formalizada pela crise atual, destruindo direitos fundamentais.

Michael Heinrich

À noite, ocorreu a conferência “Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels”, com Michael Heinrich (MEGA, Alemanha), mediada por Augusto Buonicore, da Fundação Maurício Grabois.

Heinrich disse que Marx negava ter criado um sistema final, fechado. Ele sempre foi um cientista e deixou registrado no prefácio do primeiro volume d’O capital que cada crítica científica seria bem-vinda. Marx era um cientista aberto a críticas, afirmou.