Manoel Rangel rebate críticos e promete novas ações na Ancine

Dois presidentes, quatro ministros da Cultura e oito anos passados, um nome continua como a força máxima da política cinematográfica brasileira: Manoel Rangel. O Senado aceitou a indicação da Presidência da República e confirmou Rangel para um mandato de mais quatro anos como diretor-presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Em entrevista para o O Globo, Manuel rebate os críticos e promete novas ações para os próximos quatro anos.

Manoel Rangel

A nomeação foi feita em meio a um debate público sobre a pertinência de um mesmo diretor ficar tanto tempo à frente do órgão, cujas funções são regular e fomentar as práticas audiovisuais no país.
Desde o início do ano, o mercado já vinha discutindo quem seria o substituto de Rangel.

Um grupo de cineastas chegou a divulgar uma carta de apoio a sua permanência, mas servidores da Ancine e também uma de suas diretoras, Vera Zaverucha, vieram a público questionar a necessidade de um terceiro mandato. Mas, no fim de março, a ministra Marta Suplicy anunciou que iria indicar Rangel para continuar no cargo.

Em sua primeira entrevista desde que começaram as polêmicas sobre sua permanência e às vésperas de ser nomeado mais uma vez, Rangel rebate os críticos e promete novas ações para os próximos quatro anos. Ele diz que não vai aceitar situações como a de “Homem de Ferro 3”, que ocupou metade das salas brasileiras em sua estreia. Afirma, ainda, que pretende combater o excesso de reprises de obras nacionais na TV por assinatura para cumprir as cotas impostas pela lei 12.485, de 2011. E diz que terá como prioridade uma regulação para os serviços de vídeo por demanda, que não poderão mais operar de fora do território nacional.

O Globo: Depois de oito anos à frente da Ancine, o senhor enxerga algum ponto em que não conseguiu atuar e que pode ser prioridade para os próximos quatro anos?

Manoel Rangel: Há uma grande transformação no mercado audiovisual em curso, e, desde o momento em que cheguei à Ancine, nosso esforço foi procurar alinhar a agência a essas mudanças. Mas houve um conjunto de questões que observamos há algum tempo e que já poderiam ter sido alvo de iniciativas. Não foram porque tínhamos nós a desatar, como o da TV por assinatura, que eram prioridade e que não permitiram lidar com todas as variáveis que estavam na mesa. Destaco três dessas questões: o vídeo por demanda, os direitos das obras audiovisuais para cinema e o mercado de DVD.
No caso do vídeo por demanda, como pode ser a regulação de um serviço que, comparado com outros setores da cadeia, parece ter uma natureza mais livre?

É um desafio. Estamos num processo de estudar esse mercado, que se encontra em uma fase embrionária. Nossa premissa é que apenas será objeto de regulação o serviço comercial de entrega de obras audiovisuais. O que não envolver transação de valores ou exploração econômica não terá regulação. Então, o primeiro ponto é que vamos nos manter afastados do território de trocas livres. Mas há duas questões que podem ser trabalhadas. Hoje, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) representa um ônus excessivo para o vídeo por demanda, que paga o mesmo valor do DVD. É preciso encontrar uma solução de ajuste tributário, buscar uma forma mais justa de fixar a contribuição. Outra questão é que esses serviços não poderiam ser prestados a partir do exterior. Devem ser prestados com empresas situadas no país, com sua base no país e com responsáveis identificados aqui.

A Netflix, que ainda não opera a partir do território brasileiro, por exemplo, teria que se adequar?
Eles têm a consciência que precisam operar a partir do território brasileiro e construíram uma pessoa jurídica no país. Todos os operadores internacionais sabem que é assim que o arranjo legal geral do país orienta que se dê a prestação do serviço.

E o que a Ancine poderia ter feito no mercado de DVD, tendo em vista a crise que ele viveu nos últimos anos?
Uma frustração é que não consegui construir um acordo para suavizar a crise. Não faltaram propostas da Ancine, mas os distribuidores de DVD optaram por ficar no território do status quo. A partir do momento em que o mercado de DVD teve de ter uma diversidade de títulos para se sustentar, os catálogos passaram a ser cruciais. Mas alguns dispositivos da lei, como o valor da Condecine para os DVDs, tornaram-se uma limitação para a manutenção de amplos catálogos. Nós propusemos uma solução, mas sempre esbarramos na dificuldade de eles entenderem que não poderíamos simplesmente eliminar a Condecine. Poderíamos, sim, ter uma contribuição menos onerosa para os catálogos. É um tema com que ainda vamos ter de lidar, mas, nesta altura, qualquer solução será paliativa. Em outros momentos, porém, poderia dar um fôlego maior para o segmento.

E quais são os problemas quanto aos direitos de obras para cinema?
Quando uma obra é cedida para o distribuidor, os acordos incluem um conjunto de direitos e uma forma de exploração econômica que por vezes aliena o produtor de seus direitos por um tempo muito longo. Depois do lançamento no cinema, há toda uma cauda longa de possibilidades de exploração de uma obra cinematográfica, cujos direitos vão depender de como o produtor mediou sua relação com os distribuidores. Nós resolvemos isso para as TVs com a lei 12.485, mas o cinema ainda é carente de ajustes.

A lei 12.485 representou uma das maiores mudanças nos oito anos em que o senhor esteve à frente da Ancine. Mas o resultado vem gerando algumas distorções. É de entendimento comum que, para cumprir as cotas de obras nacionais em suas grades, alguns canais de TV por assinatura exageram nas reprises de filmes mais conhecidos. A Ancine pode fazer algo a respeito?
A lei ainda está em seu primeiro ano de implementação, e, como resultado, já mostra uma transformação no comportamento das programadoras, com uma presença mais forte de conteúdo brasileiro. Isso aumentou, também, a reprise de obras nacionais na TV. Quando fizemos o regulamento, prevaleceu o raciocínio de que nós não deveríamos fixar limites para reprises, a não ser o de que cada obra valeria pelo intervalo de um ano para o cumprimento de obrigações de carregamento de conteúdo brasileiro. Fizemos isso com a confiança de que os programadores não iriam degradar a qualidade de sua programação, não iriam criar incômodo para os assinantes. Mas houve um crescimento nas reclamações sobre reprises, e estamos prontos a adotar medidas caso esse excesso se mantenha.

No lançamento do Fundo Setorial do Audiovisual, em 2008, o senhor falou que a meta era atingir de “Xuxa” a “Baixio das bestas”. Mas, se olharmos as bilheterias no último ano, com poucas exceções, apenas as comédias conseguiram um bom resultado. Como o senhor enxerga isso?
Como nosso mercado está em desenvolvimento, distribuidores e produtores estão encontrando nichos. Um desses é a comédia. Mas discordo da afirmação de que o cinema brasileiro se tornou apenas comédia. A observação de dados pregressos revela que tivemos, de 2003 até hoje, filmes como “Tropa de elite” e “Cazuza”, por exemplo, que não são comédias e fizeram sucesso. Há outros gêneros possíveis em que temos talento, e nossos produtores e distribuidores não devem se acomodar no que já dominam. Uma atualização da afirmação de que queremos de “Xuxa” a “Baixio das bestas” é que queremos de “O som ao redor” a “De pernas pro ar”. 

Mas como “O som ao redor” pode competir nas salas? Ele estreou em 13 cinemas, enquanto “De pernas pro ar 2” estreou em 718. Indo além, se olharmos os blockbusters estrangeiros, “Homem de Ferro 3” estreou em 1.250 salas, metade do parque exibidor.

O caso de “O som ao redor” é exemplo de conservadorismo das nossas estruturas de exibição e distribuição, é o típico caso de um filme que merecia um lançamento maior. Mas o que vem acontecendo é que a indústria está trabalhando com lançamentos cada vez maiores, com ocupações fulminantes das salas. Temos dito aos exibidores e distribuidores que identificamos nisso um problema. Na medida em que ele persistir, a Ancine irá procurar caminhos para equilibrar essas questões. Não queremos um único filme em metades das salas brasileiras.

Há alguns dias, Ancelmo Gois publicou em sua coluna no “Globo” que equipamentos comprados por exbidores brasileiros dentro do programa Cinema Perto de Você para a digitalização do parque exibidor estavam presos na Receita Federal. O que aconteceu?
Temos um ato de desoneração fiscal das salas de cinema, já emitido pela Ancine. Mas a Receita Federal ainda precisa publicar um ato declaratório do direito à renúncia fiscal por parte dessas empresas. Até onde eu sei, há um atraso na publicação desses atos pela Receita. Por isso, temos conversado com a Receita, que está disposta a buscar outro modo de operação que permita agilizar o processo para que se conceda a exoneração fiscal.

Como está a digitalização das salas brasileiras hoje?
De 2.500 salas que temos no total, há hoje cerca de 800 salas digitalizadas.

Quando teremos todas as salas digitalizadas?
Temos recursos disponíveis para que a digitalização total possa ocorrer até o fim de 2014. Mas isso, agora, depende dos acordos entre exibidores, distribuidores e integradores, para que as empresas tomem o crédito e viabilizem seu processo de digitalização. O que nós fizemos foi desonerar a importação desses equipamentos e montar uma linha de crédito.

Como foi a conversa com a ministra Marta Suplicy para que o senhor continuasse à frente da Ancine?
Eu compartilhei com a ministra Marta, desde o primeiro momento, o resultado que tivemos e os desafios que temos. Fiz isso com o senso de que encerrava um ciclo. Mas, no curso dessas conversas, pensando em quais eram os desafios à frente, a ministra comentou comigo que, nesse momento de consolidação de leis importantes e de crescimento do mercado nacional, ela sentia a necessidade de que eu permanecesse à frente da Ancine. Eu estava determinado a encerrar minha gestão, mas aceitei continuar, sobretudo para prosseguir no processo de construção do setor. Eu gosto do que faço, dediquei as melhores energias ao longo desses anos à Ancine. Procurei me empenhar nas boas causas e tentei sempre acreditar no potencial do Brasil. Por isso, descobri em mim entusiasmo para a tarefa por mais quatro anos.

Houve muito debate até a confirmação de seu nome para um terceiro mandato na Ancine. Ao mesmo tempo em que cineastas como Cacá Diegues e Walter Salles apoiaram sua permanência, um grupo de servidores disse temer que sua continuidade afetasse a independência da agência. Além disso, a diretora da Ancine Vera Zaverucha deu uma entrevista em que criticava o terceiro mandato, lembrando ainda da possibilidade de o presidente ter um voto de Minerva nas reuniões de diretoria. Há uma disputa interna na Ancine?
Vejo as divergências como algo natural do processo democrático. E acho normal a aspiração das pessoas por exercer a função de diretores ou presidentes da agência. Mas é uma decisão da presidente da República. E garanto que sempre exerci a presidência da Ancine com independência. Sobre o voto de Minerva, nunca o utilizei porque entendo que o consenso coletivo é a melhor solução. Eu também não participei da redação da medida provisória que criou a Ancine com esse dispositivo e com a possibilidade de um novo mandato para o presidente. Já outros, como a própria diretora Vera, participaram.

Fonte: O Globo