Avenida Álvaro Cunhal: Uma justa e merecida homenagem

A chuva que teimava em cair não demoveu centenas de pessoas de participarem na cerimônia de inauguração da Avenida, que foi ao mesmo tempo – e sobretudo – uma homenagem ao homem, ao revolucionário, ao intelectual e ao artista que lhe dava o nome.

Entre os presentes, muitos dos quais eram militantes comunistas de Lisboa ou dos concelhos vizinhos, alguns eram figuras de notoriedade pública: dirigentes do PCP [Partido Comunista Português], como Francisco Lopes ou José Capucho, ambos do Secretariado do Comité Central; o vereador comunista no município de Lisboa, Ruben de Carvalho; o candidato da CDU à presidência da Câmara Municipal, João Ferreira; a presidente da Assembleia Municipal Simonetta Luz Afonso e outros eleitos nesse órgão, bem como vários autarcas municipais e da freguesia do Lumiar.

Depois de Jerónimo de Sousa e António Costa, acompanhados por Maria Eugénia Cunhal, descerrarem a placa com o nome da nova artéria e de uma primeira atuação da banda do Regimento dos Bombeiros Sapadores de Lisboa, passou-se aos discursos, com o Secretário-geral do PCP a destacar a justeza da decisão do município em se associar às comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, dando o seu nome a uma avenida da cidade (ver intervenção na íntegra nestas páginas). Já o edil lisboeta, António Costa, justificou a consagração do histórico dirigente comunista na toponímia da cidade com o cumprimento da responsabilidade institucional do município no fortalecimento da memória histórica comum dos lisboetas. Álvaro Cunhal, acrescentou, viveu e morreu em Lisboa e marcou fortemente a história portuguesa do século 21, sendo ainda hoje uma referência para muitos portugueses.
A cerimónia terminou na outra extremidade da avenida, junto a uma segunda placa toponímica, com a banda dos sapadores bombeiros a tocar, acompanhados por centenas de vozes comovidas, ‘A Internacional’ e ‘A Portuguesa’, expressões da luta que Álvaro Cunhal travou ao longo de toda a sua vida.

Intervenção de Jerónimo de Sousa: Um combatente vertical e coerente

Permitam-me que, em nome do meu Partido, saúde a decisão do Município de Lisboa de se associar às comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal, dando o seu nome a esta avenida da cidade de Lisboa que agora se inaugura. Figura fascinante do nosso Portugal contemporâneo, Álvaro Cunhal foi um combatente pela liberdade, a democracia e uma referência na luta pelos valores da emancipação social e humana no nosso País e no mundo.

Personalidade de invulgar inteligência, homem de firmes convicções, inteireza de carácter; político de ação e autor de uma obra notável, Álvaro Cunhal dedicou toda a sua vida e o melhor do seu saber, como dirigente do PCP, como deputado, como ministro da República nos governos provisórios de Abril, como conselheiro de Estado, à causa dos trabalhadores, do seu povo e do seu país. Estadista, dirigente político experimentado e prestigiado no plano nacional e internacional, estudioso e conhecedor da realidade portuguesa e das relações internacionais, Álvaro Cunhal combinou sempre uma esforçada intervenção concreta sobre a realidade, com uma profícua produção teórica para responder aos problemas da sociedade portuguesa e do seu desenvolvimento soberano, mas também aos problemas do mundo e da luta dos outros povos.

Intelectual, homem de conhecimento, possuidor de uma densa cultura e de uma grande dimensão humanista, deixou-nos um valioso legado teórico de estudos e análise política e histórica, mas igualmente uma importante produção artística. Um abundante e valioso patrimônio que reflete um pensamento de grande riqueza e atualidade que é uma herança de todos os que aspiram construir um mundo melhor e mais justo, mas também mais belo.

Profunda ligação à cidade

Álvaro Cunhal estudou, viveu e trabalhou nesta cidade de Lisboa. Muito jovem aqui fez os estudos liceais e depois a Universidade, onde foi estudante na Faculdade de Direito, membro da Direção Académica e do Senado Universitário e onde sob prisão e escolta de uma brigada da polícia política da ditadura fascista, apresentou e defendeu, em Julho de 1940 a sua tese de licenciatura. Foi ainda estudante e vivendo nesta cidade de Lisboa que iniciou a sua atividade revolucionária e a ligação ao seu Partido de sempre – o PCP – que ajudou a construir de forma marcante a partir dos anos 40 e do qual foi Secretário-geral. Foi aqui, ainda muito jovem, que Álvaro Cunhal começou a tomar partido nos grandes combates do seu tempo, fazendo a opção pelos direitos dos explorados e oprimidos e de se entregar inteiramente à causa emancipadora dos trabalhadores, da liberdade, da democracia, do socialismo.

Um compromisso de uma vida inteira, tomado quando o nosso País enfrentava já a tragédia do fascismo que haveria de oprimir o nosso povo por 48 longos anos e mover-lhe uma perseguição implacável. Com um percurso de vida e luta de exemplar dignidade, resistindo com uma indomável determinação às mais terríveis e duras provas em dezenas de anos de vida clandestina e prisão nos cárceres fascistas, Álvaro Cunhal, assumindo o seu ideal de realização de uma ‘terra sem amos’, foi um construtor da democracia de abril e um valoroso e consequente defensor das suas conquistas.

Álvaro Cunhal deu um particular e precioso contributo com essa obra notável de estratégia e táctica política, que é o ‘Rumo à Vitória’, na qual apontou os caminhos para a revolução libertadora de Abril, para a sua defesa e consolidação e para as profundas transformações revolucionárias operadas na sociedade portuguesa.

Recusando vantagens ou privilégios pessoais, o seu percurso de revolucionário corajoso e íntegro, de uma vida densa e multifacetada, permanecerá na nossa memória coletiva como uma referência e uma fonte de inspiração para as gerações vindouras guiadas pelos ideais da liberdade, da democracia, da justiça social, pela construção de uma sociedade nova liberta de todas as formas de opressão e da exploração.

Uma obra multifacetada

No acervo de estudos e ensaio político abarcando uma diversidade de objetos e temas são célebres a tese pioneira sobre ‘O Aborto Causas e Soluções’ (1940), o seu trabalho de análise sobre a realidade dos campos em ‘Contribuição para o Estado da Questão Agrária’, o seu estudo histórico sobre um período tão significativo para a própria independência do país e tão exaltante pelo papel que desempenhou o povo de Lisboa na Revolução de 1383/1385 e que trabalhou em ‘As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média’, mas também outros períodos da nossa história mais recente em ‘A Revolução Portuguesa. O Passado e o Futuro’, entre outros. Uma abundante análise e um olhar permanente sobre os mais variados problemas do País e da vida internacional de eminente pendor político podem ser encontrados nos seus ‘Discursos Políticos’ editados em 23 volumes, nas ‘Obras Escolhidas’ e numa profusão de artigos e brochuras de revistas nacionais e internacionais.

Álvaro Cunhal interligou a sua intervenção revolucionária no plano político com um apaixonado interesse por todas as esferas da vida, nomeadamente na atividade de criação artística. Autor de uma arte comprometida e por onde perpassa o povo que sofre e luta, Álvaro Cunhal cria uma dezena de obras literárias de onde emergem, como expoentes maiores, o romance ‘Até Amanhã, Camaradas’ e a novela ‘Cinco Dias, Cinco Noites’, ambos escritos no isolamento total da Penitenciária de Lisboa. É na prisão que leva por diante a notável tradução do ‘Rei Lear’, de Shakespeare, desenha e pinta um vasto conjunto de quadros e produz o texto sobre estética ‘Cinco Notas Sobre Forma e Conteúdo’ – matéria que voltará a abordar, mais tarde, após o 25 de abril, no importante ensaio ‘A Arte, o Artista e a Sociedade’, uma obra onde se revela o valor social da criação artística.

Homenagem justificada

A vida, o pensamento e a luta de Álvaro Cunhal justificam a homenagem que lhe prestamos. Uma homenagem ao homem, ao político, ao intelectual e ao artista que, neste momento de inquietantes fenómenos de regressão social e retrocesso civilizacional, mas também de abuso de poder, tanto mais se justifica para demonstrar que os políticos não são todos iguais e que a atividade política pode e deve ser uma atividade nobre.

Num momento em que o capitalismo está mergulhado numa das mais profundas crises da sua história, em que no nosso País a austeridade imposta pelo grande poder económico e pela troika se acentua e se afirma a necessidade de encontrar os caminhos do progresso e da justiça social, a luta, a obra e o pensamento de Álvaro Cunhal projetam-se como contributos inestimáveis para a conquista de um futuro que tenha como referência os valores de Abril – os valores da liberdade, da democracia, do desenvolvimento económico, da justiça social e da independência nacional.

Álvaro Cunhal morreu aos 92 anos em 13 de Junho de 2005 e o seu funeral, nesta cidade de Lisboa, com a participação de centenas de milhares de pessoas, foi bem a demonstração do reconhecimento dos trabalhadores, do povo de Lisboa e do País a esse homem de cultura integral, intrépido revolucionário de uma vida vivida de cabeça erguida, feita de verticalidade e coerência na busca incessante dos caminhos da vitória sobre a injustiça e as desigualdades e a construção de um mundo mais justo, livre e fraterno.

Mais uma vez saudamos a decisão do Município de Lisboa que nos honra e honra a sua memória!

Fonte: Avante!