"Sem as reformas não avançaremos", frisa Renato Rabelo

O presidente nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Renato Rabelo, herdeiro político de João Amazonas, integra aquele seleto grupo de intelectuais orgânicos cujo preparo político pode ser posto à prova a qualquer momento, seja qual for o tema em pauta, seja onde for o debate. Bom brasileiro, ele não foge à luta.

Dialético até a medula, classista por excelência, o comunista tem a perfeita dimensão do que está em jogo no Brasil e no mundo: “O sistema capitalista está em crise. Tudo isso está sendo questionado”.

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"Mudanças no Brasil estão condicionadas às reformas estruturais"

A convite do seu camarada, deputado estadual Fabrício Falcão, Renato Rabelo
esteve em Vitória da Conquista, onde participou de duas atividades. A primeira, no Auditório Vermelho do Sindicato dos Bancários, ele conversou com lideranças regionais de seu partido, mostrando, entre outras coisas, que há uma diferença clássica entre a presidenta Dilma Roussef e seu antecessor e padrinho, Lula.

Este faz política, aquela gerencia. Para demonstrar o tamanho da diferença, ele informou que enquanto Lula reunia o Conselho Político de quinze em quinze dias, a presidenta Dilma reuniu o mesmo colegiado pela primeira vez por ocasião das manifestações populares de junho. E só.

À noite, em seminário para discutir os 10 anos dos Governos Lula e Dilma, o líder comunista deu mais um banho de conhecimento dos problemas nacionais, abrindo um leque para uma interpretação da realidade brasileira em suas múltiplas dimensões: política, social, cultural e eleitoral. Ao fim do evento, acompanhado do de Élvio Magalhães, assessor parlamentar de Fabrício Falcão, Renato Rabelo conversou longamente com o Blog do Fábio Sena, com o qual discorreu, com elegância e simpatia, sobre temas da moda e outros que estão a exigir uma pauta na grande mídia brasileira.

Abaixo, a íntegra da entrevista com o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo. Boa leitura.

Blog do Fábio Sena: Presidente, a impressão que ficou, ao menos para mim, é que o Governo Federal se intimidou com as manifestações de rua e se apressou em apresentar medidas emergenciais, como a reforma política. Em nenhum outro momento assuntos como reforma política ou plebiscito tinham vindo à baila, desde o início do governo em 2003…
Renato Rabelo: A questão da reforma política, nós estamos batalhando por ela há quase 30 anos. Nós temos companheiros na Câmara dos Deputados que foram exatamente artífices em cada momento, se dedicando só ao problema da reforma política. Então, a realidade mostra o seguinte: nesse Congresso é muito difícil você conseguir aprovar uma reforma política profunda, pode aprovar reforma política cosmética, parcial, mitigada, esse tipo de coisa. Por quê? Porque quem se elege no sistema, ele acha que o novo sistema vai ser um desconhecido para ele. E ele não quer jogar com isso, então fica muito difícil. Por isso que tem propostas em função dessa experiência, até de se convocar uma Constituinte exclusiva para tratar só da reforma política. O PT vem desenvolvendo essa posição ultimamente, a presidente chegou a mencionar na primeira proposta dela a Constituinte e terminou ficando na questão do plebiscito. Por quê? Porque todo mundo sabe que o Congresso continua em um impasse sobre a reforma política. Ora, já que o povo veio às ruas e está se manifestando, e, aliás, vem com esse ardor de se manifestar, acho que nada mais justo que propor um plebiscito, que é ouvir o povo numa questão que se tornou um impasse no âmbito do Parlamento. Por isso que ela ocupou esse espaço político com a proposta dela.

Aí a oposição escandalizou…
Renato Rabelo: A oposição vendo que isso podia exatamente ser uma forma dela jogar um papel político em uma situação em que ela estava na defensiva, eles começaram a ter uma atitude contra o plebiscito, dizendo que era uma coisa complexa, até mesmo dizendo que o povo não está preparado para votar.

Uma deselegância com o povo…
Renato Rabelo: Podiam até dizer isso intramuros, agora dizer isso assim abertamente, Que o povo não está preparado para votar… O povo sempre está preparado para votar, porque ele tem que dar a opinião dele de tudo. Agora, é claro que você não vai complicar uma coisa que pode ser simples, não é verdade? Aliás, tudo na vida é simples, até um ramo da ciência que a gente não domina muito eu posso traduzir de forma simples para um leigo. Ainda mais numa questão política, que é uma questão do povo, ou seja, não é uma questão estranha ao povo. É justo o plebiscito e nós estamos empenhados em levá-lo adiante.

Para 2016…
Renato Rabelo: Pode acontecer de não conseguirmos validar o resultado do plebiscito para 2014, porque estão muito em cima também as coisas, mas, é importante a gente conseguir esse plebiscito, e que o povo se pronuncie, porque no âmbito do Congresso é muito difícil a gente resolver questões fundamentais, como financiamento de campanha e sistema eleitoral. Por isso que o plebiscito basicamente deveria levar o povo a essas duas questões para ele se pronunciar. No caso do financiamento nós estamos convencidos de que isso está superado, nós não podemos ficar ao sabor de um financiamento de campanha privado, porque todo aquele que depende do financiamento de empresas vai ter que responder, é como quem diz assim: “Eu te adiantei um financiamento, você vai ter que me pagar isso”. Isso é um absurdo, é um rebaixamento da política! Acho até que é um retrocesso civilizacional. Nós não podemos permitir, isso aí está esgotado.

O sistema eleitoral brasileiro parece não favorecer uma representatividade política que seja considerada a ideal…
Renato Rabelo: O sistema eleitoral, nós achamos que seria muito mais justo e representativo manter o sistema proporcional. Não o sistema proporcional atual, que é uninominal, você vota nas pessoas, e ao votar nas pessoas também os candidatos de um mesmo partido disputam dentro do próprio partido. Isso é inconsequente, por isso que nós propomos o sistema proporcional, e não o majoritário. O sistema proporcional é que os partidos apresentem uma lista de candidatos e o seu programa para o povo escolher em função do programa dos candidatos. É muito claro, não fica aquela confusão de gente, cada um diz uma coisa, ninguém sabe de que partido é, o que é que vale aquilo ali. Aí você fortalece o partido e o povo fica acompanhando o que é que cada partido quer, e o candidato está comprometido e é eleito com base naquele programa. Nós achamos que isso é muito mais avançado do que o sistema atual, que confunde o povo, e se cai num pragmatismo muito grande; ninguém sabe qual é o programa do partido, nem mesmo do candidato e você vota no escuro. Os partidos não se fortalecem nunca dessa maneira.

As manifestações de junho parecem ter demonstrado a falência da representação da política e da própria possibilidade de participação política…
Renato Rabelo: Numa situação como essa, eu acho que o sistema eleitoral, voltando à questão do financiamento da campanha, isso cria situações muito anormais no processo político, porque o povo fica distante porque diz o seguinte: “Poxa, um deputado ter que investir 5 milhões para se eleger… Bom, alguma coisa de errada tem aí”. Então fica aquela desconfiança que vai crescendo. Vêm os candidatos, falam o que querem, não têm um programa explícito, depois como é que o povo vai cobrar? Como é que eu vou cobrar se o cara não tem um programa? Ele vai dizer para mim: “Não, não foi bem isso que eu disse, não é aquilo”. E aí, como é que eu cobro? Então é um problema de lógica política. Por isso mesmo que esses problemas aí eu vejo que a gente só resolve ou com um plebiscito ou com uma Constituinte, só que ainda não está maduro para uma Constituinte, porque a Constituinte é um poder soberano do povo. Você não pode propor uma Constituinte exclusiva, porque se é uma Constituinte é um poder que emana do povo e pode tratar de tudo, não só da reforma política. Para o eleitor que te elegeu não fica claro isso, então fica um negócio meio complicado esse negócio de Constituinte exclusiva. Constituinte tem que ser Constituinte. Ela pode ser uma Constituinte revisora de uma Constituição, porque você sabe que às vezes a Constituição é promulgada e depois a própria Constituição que foi promulgada estabelece períodos para balancear aquela Constituinte e fazer revisões que a prática política e a prática da vida do povo mostraram que aqueles preceitos constitucionais não estão muito claros ou já estão até superados. Então tem as revisões, uma espécie de Constituinte revisora, mas tem um papel muito definido. Agora, uma Constituinte exclusiva? Fica contraditória com essa ideia da Constituinte. A Constituinte pode tratar de tudo. Nós temos dito que o congresso do PCdoB para o Estatuto do PCdoB é uma Constituinte, por quê? Porque eu posso tratar de tudo, posso mudar programa, mudar estatuto, tudo! Então é contraditório tratar só de um tema. Agora, o plebiscito é importante porque se o povo está se pronunciando, vem para rua, reivindica, e, sobretudo, entra essa questão que a gente chama de uma crise da democracia representativa, então para ter essa representatividade mais autêntica, e uma representatividade que o povo confie, acredite e valorize, é preciso ouvi-lo. É uma base para você começar a fazer uma reforma política para garantir uma representatividade maior.

Na sua avaliação, qual o problema da democracia representativa, para além desses aspectos eleitorais mencionados anteriormente?
Renato Rabelo: O problema hoje da democracia representativa, tem a democracia participativa, que, aliás, a Constituinte de 1988 avança muito nisso, porque você pode ter a iniciativa popular, que é importante você conseguir 1% dos eleitores, e através de um projeto de lei o Congresso tem que apreciar aquele projeto de lei com base em 1,5 mi de assinaturas. Tem o plebiscito e tem o referendo, então tudo isso é uma espécie de democracia participativa. Na democracia representativa você tem o parlamento, os executivos. Essa democracia está em crise, e não é só no Brasil, para você ver que isso é uma questão universal. A crise da democracia representativa no mundo capitalista liberal, ela é questionada na Europa, nos EUA, na América Latina etc. Talvez tenha um problema mais de fundo aí, que é a própria crise do sistema. O sistema capitalista está em crise há cinco anos, quase seis. Tudo isso está sendo questionado, talvez o problema seja até mais profundo… Você não vai confiar em uma pessoa que você não sabe o que ele defende, qual é o programa dele e de que forma ele foi eleito. Aí é uma desconfiança completa.

No Governo Lula, observou-se um deslocamento de milhares de pessoas da pobreza para a classe mais remediada, ou seja, entrando na faixa de consumo etc. Os governos praticaram um discurso economicista, de consumo, sem jamais fazer o debate de convencimento político-ideológico, apelando ora para a propaganda pura e simples, em vez de aprofundar a consciência política da população. Esse modelo de política compensatória desprovido de um debate político efetivo também não traz consigo problemas?
Renato Rabelo: É evidente que você levanta um tema que é procedente, ou seja, uma fase histórica, relativamente curta, em que você promove uma espécie de mobilidade social dessa dimensão, porque são em torno de quase 40 milhões de pessoas. Para você ao mesmo tempo conseguir que essas pessoas tenham uma consciência política e social daquilo que ela alcançou, isso nós não conseguimos assim tão rapidamente. Isso leva tempo, e para isso é necessário ter comunicação com essas pessoas, e hoje o governo tem muita dificuldade de comunicação com essas pessoas, e isso não é por acaso. Então, a consciência política fica no seguinte nível: é que Lula foi o grande patrono disso, a consciência política é essa. Lula é o garantidor disso, por isso que elegeu a presidente atual. E até mesmo num caso de uma crise maior, quer dizer, olha aí qual é o nível da consciência política. As pessoas querem que o Lula volte, porque é nele que eles confiam, porque Lula que é a referência disso aí. O nível político é esse, um nível primário, que a gente tem que avançar muito mais, não só a consciência social. Para ele sentir mesmo que ele avançou, ele ter consciência plena e lutar por mais direitos, e ter a consciência política de porque ele conseguiu aquilo. Qual foi exatamente a realidade governante que permitiu ele alcançar aquilo ali, então aí é o problema da consciência política, isso sempre leva mais tempo.

Governabilidade. Esta expressão ganhou força nos governos de Lula e Dilma. O senhor não considera que há um conceito tosco de governabilidade no Brasil? Não é equivocada essa escolha de promover essa governabilidade a partir apenas dos parlamentos? Lula, por exemplo, não tinha, quando se elegeu pela primeira vez, plenas condições de uma aliança com o povo?
Renato Rabelo: Olha, você tem que levar em conta a própria realidade política brasileira. Vamos pegar 2003 e Lula que você aí enfatizou. Lula, em 2003, procurou realizar uma aliança sem o PMDB, e insistiu nisso, e procurou então outros tipos de aliança. Por quê? Porque o PT, e mesmo se juntando com os partidos chamados de esquerda ia ter 1/4 dos votos no Parlamento Nacional, então como governar? E ele tentou aliança com outros partidos, tendo exatamente o PT no centro, à esquerda, e ele viu que não era possível. E você vê que no segundo governo Lula, já no final do primeiro, ele teve que considerar o papel do PMDB, senão ele não governava. Então essa é a realidade da correlação de força no Brasil, correlação de força é uma coisa muito objetiva, não é nossa vontade, e, “tá” bom, você pode dar um grito de independência, só que você vai criar uma crise de governo no outro dia, porque esses partidos vão boicotar, não passa nada no Congresso. Podemos caminhar para uma crise de governo. Crise de governo é vazio de governo, e isso para o povo tem um impacto gigantesco. E aí, como é que a gente sai dessa? O exemplo da América Latina: Chávez conseguiu ter uma maioria de Congresso, o partido dele, o Evo Morales conseguiu com o partido dele ter a maioria. Então é diferente. Nós não, nós não conseguimos. A própria Cristina [Kirchner], naquela fase inicial, o partido dela tinha a maioria. Nós não conseguimos isso no Brasil, quer dizer, a esquerda chega ao centro do poder, porque está no centro aí Lula, o PT, nós etc., etc., mas só a minoria no Parlamento. Não conseguiu mudar, melhorou, avançou, mas não é uma mudança de qualidade no Parlamento. Então para governar essa é a grande arte política hoje, porque o povo acha, quer dizer, uma parte do povo, muito bem intencionado e é isso mesmo, então por que é que não deixa esse pessoal de lado? Por que fazer aliança com essa gente? O senso comum. Mas se a gente deixa eles de lado nós não vamos governar, ou seja, vai se caminhar para uma crise de governo, essa que é a questão. E aí o povo vai se meter numa realidade mais complicada ainda. É que começa a dizer: “Pô, vocês chegaram e não está conseguindo governar”, então a crítica passa a ser exatamente para nós, em cima de nós que não estamos governando.

Mas o que se pode fazer? Ficar refém a vida inteira?
Renato Rabelo: Nós estamos propondo agora em uma discussão que nós estamos fazendo no nosso congresso, que a gente está achando que é necessário a gente ter um bloco mais representativo e amplo, com fisionomia de esquerda no país, e não simplesmente um núcleo de esquerda. É que você reúna partidos que possam comungar com a plataforma de esquerda. Grupos mesmo dentro de determinados partidos que possam ter uma plataforma de esquerda, lideranças, movimentos sociais. Aí você cria um amplo movimento, um amplo bloco de afinidades de esquerda. Nós achamos que a fase atual vai ter que ser essa, exatamente para que a gente consiga ter uma marca maior nessa frente, para que a gente cresça, para ser mais consequente no nosso programa, porque evidente é um programa muito amplo e acaba a gente não sendo tão consequente na aplicação do programa.

Renato, a criação de novos partidos no Brasil virou febre. Partido para mulher, para servidor público… Há até um escritor americano segundo quem o Brasil vive um subdesenvolvimento partidário…
Renato Rabelo: Já há exigências para você formar um partido; mais de 500 mil assinaturas e outras exigências. Nós sempre somos contra essa história de você restringir a organização partidária. Isso é uma questão de princípio do PCdoB, porque nós vimos isso na pele, nós temos 91 anos de existência e a maior parte desse tempo foi na clandestinidade. As forças dominantes conservadoras sempre impuseram a clandestinidade e a ilegalidade ao partido comunista, ora, nós sempre lutamos pela liberdade política. Esse é um preceito político fundamental para o PCdoB, a liberdade partidária etc etc. O que resolve para mim é a decantação política.

Que decantação política?

Renato Rabelo: É a gente ter movimentos e partidos de esquerda que cresça e se fortaleça. Não tem outro caminho para nós. Daí essa proposta que nós fazemos. Na fase atual, de ter esse movimento de esquerda, esse bloco de afinidade de esquerda, que perpassa partido, pode ter até mesmo pessoas e grupos dentro de um partido que venha a aderir esse bloco, a essa plataforma de esquerda. Os movimentos sociais que queiram aderir, entidades da sociedade civil que queiram aderir…. aí você cria um movimento com uma fisionomia de esquerda, aí é uma base para a gente fortalecer uma alternativa de esquerda. É o que nós estamos propondo hoje exatamente para responder essa questão e esse tema que é importante para nós, para a própria democracia do país.

Fonte: Blog do Fábio Sena