Angelina Anjos: chacinas, crime sem castigo, do luto à luta

Limpar a sociedade de elementos considerados indesejáveis não é uma ideia nova. Em janeiro de 1963, durante o governo de Carlos Lacerda no Estado da Guanabara, uma sobrevivente denunciou que policiais ligados ao Serviço de Repressão à Mendicância da Delegacia de Vigilância atiraram mendigos, recolhidos das ruas, nos rios Guandu e da Guarda. Depois de espancados eram atirados às pedras e lançados nas águas. 

Por Angelina Anjos, especial para o Vermelho

Dos tempos de ditadura no Brasil à atualidade já passam cinqüenta anos e a prática é de uma situação que perdura, onde tudo muda e nada muda. Inúmeras denúncias são noticiadas e tornam-se públicas, em que se expõe a fragilidade de um sistema de segurança pública que necessita ser revisado, no sentido de prestação de serviço público alinhado ao espírito de Estado democrático.

Denúncias conhecidas como os Crimes de Maio, em São Paulo no ano de 2006, reuniram vítimas da violência policial de vários estados, deixando claro que os massacres de pobres e jovens cometidos pela Polícia Militar e por grupos de extermínio a ela ligados não se limitam a São Paulo e sobreviveram ao chamado processo de democratização.

Em 2006, Rose Nogueira, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo, afirmou ter ouvido, enquanto presa política, em 1969, a seguinte declaração durante os dias de cárcere no Presídio Tiradentes. “Os carrascos da Ditadura diziam que, para cada agente do Estado que fosse morto, eles matariam outras dez pessoas, na base de dez para um”.

Foi a partir de 1968 que o Esquadrão da Morte começou a “rubricar” seus crimes. Ao lado dos corpos das vítimas, que em geral apresentavam sinais de algemas nos pulsos, torturas e uma corda de náilon no pescoço, começou a aparecer uma marca: uma caveira com duas tíbias cruzadas e as iniciais E.M.

O delegado Sérgio Paranhos Fleury, homem símbolo do Esquadrão da Morte em São Paulo, foi convocado para o “combate à subversão”. Afirmou dentre suas práticas os métodos do Esquadrão. Envolveu-se numa série infindável de torturas a presos políticos, utilizou o esquema de esconder prisioneiros em um sítio na periferia da cidade e, principalmente, participou de emboscadas e fuzilamentos de militantes de organizações que haviam aderido à luta armada.

O Esquadrão agiu no Rio de Janeiro até 1971 e levantamentos na imprensa da época revelaram que 767 cadáveres com aquelas características – os denominados “presuntos” – foram encontrados.
A imprensa brasileira transmitiu ao público a primeira impressão de que o Esquadrão era composto por policiais desiludidos com a morosidade e as falhas da Justiça, que seria incapaz de lidar com bandidos tidos como irrecuperáveis. Essa impressão é desmistificada através das denúncias, que se multiplicaram, de que haveria envolvimento do Esquadrão com quadrilhas de ladrões de carros e de traficantes.

Embora as chacinas ocorram em pleno Estado democrático, os crimes parecem seguir a mesma lógica dos tempos de ditadura militar no Brasil. A onda de homicídios em São Paulo em 2006 começou com uma série de ações coordenadas pela facção criminosa, Primeiro Comando da Capital (PCC), que matou 43 agentes públicos, incluindo policiais, guardas civis, agentes penitenciários e um bombeiro. Destes, 37 foram mortos. A partir daí quando os atentados do crime organizado já estavam praticamente encerrados, teve início a reação da polícia e dos grupos de extermínio, que em sete dias multiplicou por dez a quantidade de cadáveres nas ruas.

São dados que fazem parte do principal estudo publicado sobre os Crimes de Maio, o relatório “São Paulo Sob Achaque”, produzido pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard em parceria com a ONG Justiça Global. O estudo afirma que o Estado foi responsável pela expansão do crime organizado nos presídios, ao estimular a política de encarceramento em massa sem resolver os problemas de superlotação, condições desumanas, torturas e chacinas, que permitiram ao PCC se legitimar entre os detentos.

Um monstro que o Estado não apenas pariu como embala. A sensação de impunidade é tão grande, que chacinas ocorrem em plena luz do dia, em bairros populares. Esperam por várias horas a vítima, matam-na na frente de várias testemunhas, abandonam por ali mesmo, quando não desaparecem com o corpo.

Essas chacinas, com o sentido de “limpeza social”, se valem do sentimento racista e de discriminação social estendido em setores da classe media e da burguesa, que aceita e promove a ideia de extermínio de setores que consideram seus inimigos sociais marginais, não integrados à sociedade.

Onde está o Amarildo? Essa pergunta tomou o Brasil. O sumiço do pedreiro Amarildo Dias, 47, pai de seis filhos e morador da Favela da Rocinha, se espalhou pelas redes sociais. Foi visto pela última vez no dia 14 de julho de 2013, sendo levado por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da região para prestar depoimento. Estranhamente, as duas câmeras instaladas na Unidade Pacificadora da Polícia da Rocinha falharam justo no dia em que Amarildo foi levado para a unidade e o caso permanece sem solução.

A ação das policias continua a ter como suas vitimas preferenciais a população pobre e negra das periferias, realidade de violência conhecida em São Paulo e vem ocorrendo há muito mais tempo e em muitos estados da federação brasileira. O exemplo disso foi pintado com o sangue derramado em massacres como Carandiru (1992), Candelária e Vigário Geral (1993), Corumbiara (1995), Eldorado dos Carajás (1996), Praça da Sé e Felisburgo (2004), Baixada Fluminense (2005), Crimes de Maio (2006), Complexo do Alemão (2007), Morro da Providência (2008), Canabrava (2009), Crimes de Abril na Baixada Santista, Vitória da Conquista (2010). E, mais recentemente, na Favela da Maré, no Rio.

O Mapa da Violência do Ministério da Justiça apontou que mais de 500 mil pessoas foram mortas entre 1998 e 2008, em sua grande maioria, jovens pobres e negros das periferias das metrópoles. Demonstra que a contenção realizada à bala pelo Estado brasileiro tem preferência de cor e condição social.

É preciso mudar a política de segurança pública, que é de extermínio e repressão da população empobrecida nas periferias, é necessário mudança de conduta dentro do Estado brasileiro, que promova a ruptura com estruturas continuadas que não cabem na consolidação da democracia brasileira.

É imprescindível além da remuneração compatível para policias militares, treinamento, capacitação, viabilidade psicológica para atuar num cotidiano de condições de risco iminente, inteligência, sistema de comunicação eficiente, tecnologia moderna e sofisticada, aumento de efetivo, direito a FGTS, aviso prévio, pagamento de horas-extras, adicional noturno, filiação sindical e direito de greve. As más condições para o exercício dos policiais militares afetam o bem-estar social e a própria dignidade tornando cambaleante, restrita e deprimida sua atuação enquanto profissional e sua cidadania.

É tempo de extinção dos boletins de ocorrência recheados do eufemismo “resistência seguida de morte” para registrar as mortes cometidas por policiais. Ausente do Código Penal, a figura da “resistência seguida de morte” prejudica a apuração dos crimes, pois impede que sejam julgados pelo Tribunal de Júri como os demais homicídios.A SDH (Secretaria de Direitos Humanos) da Presidência da República informou como resposta, que editou em novembro de 2012, a Resolução 8 do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que determina a abolição dos termos "auto de resistência" e "resistência seguida de morte" em registros policiais, boletins de ocorrência e inquéritos policiais.

Federalizar as investigações sobre os crimes cometidos por policiais militares e levá-los também para a Organização dos Estados Americanos (OEA) para que sejam apurados e esclarecidos.

A Corte não pode obrigar o país a cumprir as sentenças, nem puni-lo por descumprimento, seu poder é muito mais de constranger o país internacionalmente por violação dos direitos humanos. Infelizmente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) têm se comportado como fantoche do interesse estadunidense, não é à toa que a prisão de Guantánamo resiste ao tempo, apesar de toda denúncia de graves violações, incluindo torturas e estupros de presos que lá estão muitas das vezes sem condenação definida ou direito de defesa.

Que exista punição exemplar às retaliações e ameaças por parte do poder público que fazem parte da rotina das vítimas do Estado que se dispõe a lutar por justiça.

Estudo Global sobre Homicídios em 2011, realizado pelo Departamento de Drogas e Crimes da ONU (UNODC) confirma que, dentre as 207 nações pesquisadas, o Brasil apresenta o maior número absoluto de homicídios anuais: 43.909, em 2009. Isso tudo a despeito do esforço gigantesco, comprovado em vários estados brasileiros nos últimos tempos, de se forjar ou se maquiar as estatísticas de homicídios demarcando-os como “mortes por causas indeterminadas”.

Nem mesmo recentemente, com a transição para a celebrada Democracia no final do século 20 um Estado Penal e Punitivo é perpetuado ao longo de todos esses anos, cujas elites civis e militares que o controlam negam o Direito à Memória, à Verdade e à Justiça frente a todos os seus atos do passado e do presente. Queimam corpos e toda a sua história, muitas vezes literalmente.

Um enorme aparato repressivo insiste em ter nos agentes policiais e paramilitares os principais protagonistas impunes dessa violência extra-legal, exacerbada e continuada, contra os inimigos internos definidos pelos plantonistas no poder contra os mais modestos, notadamente de negros, o que revela em recorte de classe e de raça.

Como contribuição a esse debate, é importante que desde já se considere com seriedade, sem preconceitos ou reserva de qualquer natureza, a desmilitarização das Polícias Militares. A função das Polícias Militares é prestar serviços ao seu próprio povo e não tê-lo como adversário, segundo os auspícios da Doutrina de Segurança Nacional, dos tempos da repressão política que, via de regra, tinha o próprio povo como inimigo.

É tempo de pensar seriamente nos grandes benefícios que resultariam da desmilitarização dessas polícias, fazendo delas verdadeiros integrantes da ordem civil que devem proteger.

*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil.