Secretário dos EUA não convenceu o Brasil sobre espionagem 

As desculpas esfarrapadas do secretário de Estado dos EUA, John Kerry, que, em sua passagem por Brasília, defendeu a espionagem norte-americana no país como um fator de proteção aos brasileiros, causaram péssima impressão no governo brasileiro. Detalhada no depoimento do jornalista do Guardian Glenn Greenwald ao Senado Nacional, a "proteção" incluiria bisbilhotar segredos comerciais e de empresas brasileiras.

John Kerry e Antonio Patriota - Reuters

Com a porta arrombada (e o sinal de que o pé de cabra diáfano continuará ativo), Brasília incorporou um Clausewitz adaptado aos novos tempos, em que a espionagem digital é a continuação da guerra por outros meios. Antes tarde do que nunca, o país resolveu se defender do grande amigo do Norte.

Os ministérios das Relações Exteriores, Defesa e Comunicações correm atrás do prejuízo, em busca de alternativas para aumentar a segurança da informação e blindar o fluxo de dados do Estado brasileiro.

Cogita-se do lançamento de um satélite de uso exclusivo, bem como da construção de dois cabos submarinos e a instalação protegida de um Ponto de Troca de Tráfego (PTT) internacional, centro dados em que todas as estradas da internet se encontram.

Mais importante de tudo é mesmo o fato de o governo ter percebido a natureza da guerra em curso no mundo do século 21.

Não se pode insistir em lustrar baionetas num tempo em que drones (aviões não tripulados) silenciosos eliminam a necessidade de Guantânamos. E por uma razão muito simples: as geringonças movidas à distancia "eliminam o mal pela raiz", sem o desgaste dos campos de concentração à margem do Direito.

Até mesmo Paulo Bernardo (sentado em berço esplendido no caso da regulação da mídia) percebeu o adiantado da hora.

A internet se tornou o teatro de uma guerra silenciosa, de cunho não só militar, mas político e econômico. Não lutar implica uma rendição incondicional de consequências desastrosas.

Sem normas internacionais, a web emerge como a prefiguração do mundo ideal contido nos sonhos neoliberais.

O tal do "mundo plano", a terra de ninguém em que as fronteiras e direitos vigentes no planeta original deixam de valer, imperando a lei de mercado. Bem entendido, a ‘lei do mais forte’, como mostra a realidade desvelada pelo ex-funcionário da Agência Central de Inteligência (CIA) Edward Snowden.

Um exemplo prosaico do que está em marcha: a Amazon envida esforços jurídicos nesse momento para transformar o domínio ‘.amazon’ em sua propriedade. Se tiver êxito, quando o estado do Amazonas quiser utilizar o próprio nome na web, pagará por isso.

Absurdo equivalente ocorreu quando da tentativa de um grupo empresarial japonês de patentear o Cupuaçu. Vai por aí a coisa da cyber desregulação.

Uma das propostas em análise no Itamaraty transformará o Brasil em líder de uma cruzada mundial pela definição de regras internacionais que revertam essa replica digital ameaçadora da supremacia dos "mercados autorregulados".

Cogita-se em Brasília que normas, diretos etc. do mundo digital seriam abrigados no sistema ONU, que colheria as adesões dos países, de forma a se evitar situações de desrespeito à privacidade, aos direitos humanos e econômicos.

Hoje, como se sabe, quem manda na internet são as grandes empresas privadas dos Estados Unidos e seu grande braço político operacional, a Casa Branca e o Departamento de Estado.

Além disso, o governo Dilma poderá ressuscitar uma antiga proposta do Ministério do Planejamento, surgida na época do Governo Lula, de se criar um sistema próprio de comunicação e de dados para a "blindagem" de toda a Esplanada, por fibra ótica. Funcionaria como uma espécie de intranet governamental, sobretudo para a alta administração.

Se a ideia vier acompanhada de satélite próprio, futuramente, além de permitir maior segurança, estima-se que o Governo teria uma razoável economia de recursos com o sistema de telefonia fixa, móvel e internet.

Por enquanto, são ideias no papel ou na cabeça de alguns assessores, à espera de decisões de governo, que a visita pouco satisfatória do amigo Kerry pode ter acelerado.

Enquanto a vulnerabilidade persiste, o Itamaraty recomenda cuidados básicos aos seus funcionários: manter computadores portáteis fora da rede para a produção de documentos mais sigilosos e o uso mais intenso do velho e esquecido papel, entregue em mãos. Os e-mails devem ser telegráficos ou mais protocolares.

Nas viagens internacionais da Presidenta, ainda hoje, a diplomacia leva a tiracolo uma pequena máquina datilográfica. O fato, que já foi objeto de piada, agora ganhou status de um cuidado high-tec.

No limite, depois das revelações de Edward Snowden, o corpo diplomático ironiza: "Até 'bom dia' é melhor falar pessoalmente".

Fonte: Carta Maior