Na ONU, Obama defende "destino manifesto" dos Estados Unidos

O debate geral entre os chefes de Estado, na Assembleia Geral da ONU, desta terça (24), foca na “responsabilidade” de uma idealizada comunidade internacional frente a conflitos violentos, com especial atenção à Síria, sobretudo no discurso do presidente dos EUA, Barack Obama. A representação dos Estados Unidos continua baseada no “destino manifesto” de promoção da democracia e da “civilização” no mundo, mesmo que em prejuízo do direito internacional.

Por Moara Crivelente, da redação do Vermelho

Obama na ONU - Pool/Reuters

O presidente Barack Obama defendeu-se de críticas que têm ganhado especial importância, principalmente a partir da retórica de ameaça militar contra a Síria. A iminência de uma intervenção contra o país árabe ressuscitou questionamentos fundamentais sobre a atuação da Organização das Nações Unidas e a instrumentalização, quando não a violação do direito internacional pelas potências, com os Estados Unidos à frente da empreitada.

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Obama disse relembrar a trágica experiência no Iraque, a partir da invasão conduzida pelo ex-presidente George W. Bush ao país, em 2003, com a qual os EUA adquiriram uma “humildade ganha com dificuldade”. Entretanto, o novo presidente afirmou não acreditar que a cautela seja ponto de questionamento sobre a atuação do país, principalmente no Oriente Médio.

O mesmo vale para a soberania. Obama fez o seu discurso logo após o da presidenta Dilma Rousseff, que entre outros pontos incisivos, falou do respeito imperativo à soberania dos povos, contra a ameaça intervencionista. “Repudiamos intervenções unilaterais”, disse Dilma e “o abandono do multilateralismo é o prelúdio de guerras”, completou, adiante.

Entretanto, o presidente estadunidense não se furtou ao costume de repetir, como um disco riscado, o direito que os EUA se deram de promover a “democracia” e de policiar o mundo.

Foi o caso com o trecho sobre a espionagem, apenas pincelada por Obama, ainda que tivesse acabado de ouvir de Dilma uma reprimenda contundente. E também foi o caso com a defesa da intervenção militar, tanto nos países em que os EUA sentirem seus interesses nacionais ameaçados quanto nas esferas em que “atrocidades em massa” são cometidas.

“Mesmo quando os interesses centrais dos EUA não estiverem ameaçados, estamos prontos para impedir que atrocidades em massa sejam cometidas”, disse Obama. “A soberania não pode ser um escudo para tiranos cometerem um assassinato, ou uma desculpa para a comunidade internacional não agir”, completou.

Armas químicas e nucleares e hipocrisia

Obama acusou diretamente o governo do presidente da Síria, Bashar Al-Assad, de ser o responsável pelo uso de armas químicas contra civis, no incidente de 21 de agosto, em que cerca de 1.000 pessoas morreram, na região de Ghouta (próxima à capital Damasco). Entretanto, os investigadores da ONU (também com a sua imparcialidade profundamente questionada), enviados ao país a pedido do governo sírio, ainda não emitiram uma conclusão sobre a responsabilidade pelos ataques. Ainda assim, Obama se diz convencido.

A defesa pela manutenção da ameaça de uso da força e o tom de ofensiva contra o governo sírio também marcou o discurso de Obama, até mesmo na menção ao acordo proposto pela Rússia e aceito pela Síria para a destruição do arsenal químico do país árabe.

Em 14 de setembro, o governo sírio enviou à ONU documentos para a adesão à Convenção para a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Uso de Armas Químicas e para a sua Destruição, que deve entrar em vigor para o país em outubro.

Entretanto, nem o vizinho Israel (cuja defesa Obama reafirmou estar acima de tudo na região, inclusive da responsabilização por mais de 60 anos de crimes de guerra e crimes contra a humanidade) ratificou o documento, ainda que seja também alvo de denúncias graves sobre o uso desses recursos ilegais.

Sobre o Irã, Obama fez um vai-e-vem entre a posição dos Estados Unidos firmemente contrária à produção de armas nucleares (embora o governo persa reitere frequentemente que seu objetivo não poderia ser mais distante disso), algo que “não será permitido” pelos norte-americanos, e a possibilidade de reaproximação entre os dois países, a partir da demonstração de comprometimento do novo presidente iraniano, Hassan Rouhani, com as negociações sobre o seu programa nuclear.

Política dos EUA para o Oriente Médio

Entrelaçando assuntos sobre a posição dos Estados Unidos no Oriente Médio e no Norte da África, a defesa dos “interesses nacionais” (em que, por tradição, os presidentes estadunidenses manejam virtualmente todos os assuntos do mundo) e a promoção da democracia no mundo, Obama afirmou que a política norte-americana para a região pressupõe o uso “de todos os elementos do nosso poder para segurar nossos interesses centrais na região”.

“Asseguramos o livre fluxo de energia para o resto do mundo, desmantelaremos redes terroristas, construiremos capacidades nacionais, mas quando for necessário defender os EUA contra o terrorismo, agiremos diretamente, inclusive contra armas químicas, pelo regime de não proliferação” dessas armas.

“Continuaremos promovendo direitos humanos, a democracia e mercados abertos como instrumentos de garantira da paz”, disse Obama, na tradição da exportação do modelo liberal norte-americano, como uma “mensagem de Deus” ao resto do mundo, sempre retratado como um globo de regiões fragmentadas imersas no caos, do qual o indulgente povo estadunidense se empenha por salvar a humanidade.

Neste sentido, ressaltou o envolvimento do seu país na retomada das negociações de paz entre israelenses e palestinos. Esqueceu-se de mencionar que os EUA cravaram a sua bandeira nessa empreitada há 40 anos, conduzindo um processo que apenas formaliza e permite a progressiva ocupação israelense dos territórios e das vidas do povo palestino.

Ainda assim, reafirmou o que já é óbvio e enraizado: “Nunca comprometeremos a segurança e o reconhecimento de Israel como um Estado judeu, mas a ocupação da Cisjordânia demonstra-se prejudicial para a democracia desse Estado judeu”. Obama parece ser o único a acreditar que sequer existe uma correlação entre a democracia e a caracterização de Israel como Estado judeu, essencialmente racista e segregador, como demonstrado reiteradamente.

Antes do reconhecimento do direito palestino à autodeterminação, à dignidade, à soberania e à independência como bases da sua libertação frente à ocupação israelense, Obama reafirmou privilégios que mantêm o curso opressor do governo israelense, e mencionou a necessidade urgente de resolução para questões fundamentais (como o reconhecimento das fronteiras e o retorno dos refugiados palestinos) como detalhes a serem analisados no processo.

Polícia do mundo ou multilateralismo

Desde a inserção dos Estados Unidos na política internacional, com o afastamento de uma postura isolacionista (vigente, segundo alguns acadêmicos, até a Primeira Guerra Mundial) para dar espaço ao imperialismo expansionista, com o envolvimento e a ignição de diversas guerras pelo mundo, o “destino manifesto” propagandeado pelos subsequentes líderes norte-americanos para justificar a ingerência nos assuntos internos dos países é formalizado.

Ainda ouvimos os sucessivos presidentes estadunidenses defenderem o indefensável, prostrarem-se como a racionalidade e a excepcionalidade entre os condutores de países e regiões que naufragam no “terrorismo”, na “tirania” e no “massacre” dos seus povos, para usar alguns dos mecanismos discursivos usados pelos arquitetos frustrados de um sistema unilateral em que uma potência perde o seu espaço para defesas cada vez mais contundentes do multilateralismo.

Como disse Dilma em seu discurso de abertura do debate geral, e assim como têm reafirmado frequentemente diversos líderes dos governos progressistas em vigor, o unilateralismo é o prelúdio para a guerra, e demonstra-se imperativo o investimento no multilateralismo, que será garantido e fortalecido pela reforma do sistema da Organização das Nações Unidas (principalmente do seu Conselho de Segurança).

Esta é a única forma de manter vigente uma organização cujo objetivo é a cooperação internacional pela paz e pela dignidade humana, e não o de proporcionar instrumentos de legitimação política dos crimes representados pela agressão e pelo uso da força discricionária e unilateral, conforme convém.