O voto guardião da Constituição do Celso de Melo no mensalão

Francisco Meton Marques de Lima – Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, Ex Professor da UFC. Professor Associado da UFPI

O fenômeno do chamado “Mensalão” teve seu lado positivo, que é quase unanimidade nacional: o ânimo dos brasileiros, talvez inédito pela proporção, em condenar a corrupção. Mas há um erro de origem no processo. Este erro, a meu ver, foi o agrupamento em uma denúncia única, na mesma ação, de quarenta réus com situações civis diferenciadas. No balaio dos réus, foram misturados, processualmente, diretores de bancos privados e publicitários, por exemplo, com ministros de Estado e deputados federais.

Ora, esses indivíduos nem podiam ter sido processados em uma única ação, pois os réus privados e os servidores públicos menos graduados não possuem foro privilegiado, ao contrário dos ministros e parlamentares. Os resultados estão aí. Primeiro, esse embrulho consumiu do STF milhares de dias só para tomar todas as diferentes defesas, todos com prazos privilegiados. Segundo, essa mistura de público e privado consumiu da Suprema Corte milhares de horas de discussões, terminando por ser aceito o pacote inteiro, certamente por pragmatismo, mas jamais juridicamente, só para agradar a opinião pública.

Terceiro, foi a politização do julgamento, em que o julgador decaiu da serenidade e imparcialidade de juiz para armar palanque de discurso e assumir papel de acusador. Ora, o juiz pode ser rigoroso no sancionar, mas nunca deve perder a ternura, pois ele não é acusador nem inimigo dos réus. Aliás, acusador e inimigo são suspeitos, não podem julgar, segundo os arts. 134 e 135 do Código de Processo Civil.

O circo armado preparou uma plateia rude para um espetáculo tirânico. O povo, incitado, quer sangue, quer a forca. Mas esquece que a maior conquista do ser humano foi a do direito a contraditório, ampla defesa, devido processo legal e recursos previstos em lei. Essa cláusula foi cravada na Constituição Norte- Americana de quase 250 anos.

No Brasil, foram muitas lutas por igual conquista, a qual sempre veio no papel das várias Constituições, postergada, no entanto, pelas seguidas ditaduras. Por fim, a CF/ 1988 cravou os direitos fundamentais antes das razões de Estado e a cravejou contra todas as tentativas de abolição por qualquer dos Poderes, cf. art. 60, § 4º.

A Constituição protege a dignidade humana e os direitos fundamentais de todos contra todos e contra o próprio Estado. Essa reserva de direitos é oponível aos três Poderes das três esferas da Federação e à própria sociedade. Destarte, a sociedade e a opinião pública são muito voláteis e sensíveis a modismos e propagandas. A maioria pode estar do lado da droga, mas esse valor não deve ser aprovado pela Constituição. Veja-se que Hitler levou ao holocausto mais de seis milhões de judeus com o apoio na maciça maioria dos alemães. Jesus Cristo, o maior Santo, foi condenado por aclamação.

Vão dizer: mas os mensaleiros são ladrões, não merecem concessões. Bem, a Constituição não foi feita só para os que se acham bonzinhos, mas para todos. O art. 5º, LV da CF assegura a todo acusado a ampla defesa, com os recursos previstos em lei.

E como os mensaleiros foram processados diretamente no STF, o julgamento deles assegura-lhes o recurso porventura cabível. Ora, essa lei existe: trata-se do art. 315 do Regimento Interno do STF. Sim, para os que não sabem, os Regimentos Internos dos tribunais possuem status de lei, pois estão dentro da pequena reserva legislativa dos tribunais.

E o Constituinte colocou a instituição Judiciária, no topo o STF, para guardar esse documento com punho de ferro, contra tudo e todos, no imediato, mas em favor de todos de todos os tempos. O desconhecimento desse detalhe é que faz com que muitos se indignem com o fato de o Judiciário eventualmente anular atos do Executivo e do Legislativo, quando estes tendem a desvirtuar as garantias constitucionais.

Por fim, atentai bem! Todas as ditaduras se pretextaram na opinião pública. E o discurso tirânico e midiático deve ser visto como mau presságio para a tão cara e sofrida democracia brasileira. A pressa em satisfazer a incauta opinião pública, que também não é digna de atirar pedras em ninguém, não pode redundar em atropelamento dos caminhos que a lei estabelece para o processo.

A lei é para todos, e respeito à lei ainda é o melhor caminho. Decerto, há textos de interpretação dúbia, mas até estes, por princípio penal a todos aplicável, protegem o réu. No entanto, há textos indiscutíveis, como o posto em questão. Certamente me oporão que vários ministros do STF votaram contra o cabimento dos recursos. Mas ouçam o que eles disseram: uma lástima, nada jurídico ou constitucional, apenas discurso político, satisfação à opinião pública. Portanto, decaíram do dever maior de defender a reserva de garantias oponíveis a todos, achem o que acharem.

Que todos sejam condenados e mandados para a cadeia. Porém, com todas as garantias processuais, conquista de quase três séculos, para que não venham no futuro posar de vítimas de julgamento político.

Viva a Constituição brasileira!

Fonte: Jornal O DIA