Guilherme Teixeira: Mundo do videogame ainda traz ranço machista

A cultura do videogame é um fenômeno razoavelmente antigo de nossa sociedade, mas tem se tornado mais presente nos dias de hoje pela facilidade de acesso que se tem a eles. Além do marketing das empresas, o surgimento da vida digital/virtual e a apropriação desse fenômeno por parte da sociedade, mais o crescimento do poder aquisitivo junto à diminuição dos preços de muitos jogos (quando não gratuitos), levou a um boom de gamers no Brasil.

Por Guilherme Teixeira Ohl de Souza*

A internet também tem sua parcela de responsabilidade, pois desde a sua difusão, as expressões culturais se alastram muito mais rapidamente do que em tempos passados e não foi diferente com os jogos eletrônicos.

Outro fator de popularização do videogame foi a diversificação de estilos de jogos e das tecnologias disponíveis, como o controle por sensor de movimento (Wii, Kinect e outros). Até pouco tempo, os jogos eram produzidos para os hardgamers. São jogos mais difíceis, que exigem maior destreza e consequentemente mais horas de jogo.

Com o advento de jogos mais acessíveis a quem não tem tanto interesse em superar esses grandes desafios, criaram-se os jogos casuais, nos quais a pessoa obtém uma diversão fácil e rápida sem ter que jogar por muito tempo (podem ser jogados em uma fila de banco ou no transporte público – jogos como paciência são exemplos desse tipo); e os jogos sociais (como Farmville, por exemplo), onde as pessoas compartilham seus jogos (e seus elementos), buscando a socialização com outras pessoas, mais do que o próprio resultado. A possibilidade de se jogar pela internet também levou a uma nova forma de vivenciar o jogo.

Com essas mudanças, surgiu um público até então marginalizado no universo do videogame: o feminino. Isso também fez surgir uma questão que não havia sido presentificada até então, que é o preconceito contra a mulher nesse universo. É o mesmo fenômeno observado em outras dimensões da vida, nas lideranças políticas, no esporte, no trânsito, etc. Apesar de não dispormos de muitas pesquisas sobre este assunto, já podemos observar algumas questões relacionadas ao sexismo no videogame e realizar algumas reflexões sobre ele.

Vamos resgatar de modo resumido um pouco da história do videogame para contextualizar o surgimento desse fenômeno cultural. Os jogos eletrônicos foram criados em um laboratório militar americano e depois continuaram a ser desenvolvidos por engenheiros eletrônicos – homens. Ou seja, o videogame surgiu como uma expressão essencialmente masculina, permeados pelas suas respectivas visões de mundo, de sociedade e de humanidade. Além disso, os games surgiram no contexto da guerra fria e do confronto, características associadas à masculinidade. Esse contexto colaborou para que a temática principal dos jogos fosse a guerra (vide o jogo Space Invaders) ou os confrontos de modo geral (os objetivos eram matar, destruir, conquistar, etc.).

Nos anos 80, na época do Atari e similares, tanto o marketing quanto o estilo dos jogos motivaram um desinteresse das meninas pelo videogame e a imagem de expressarem um universo unicamente masculino ficou bastante cristalizada. Não é que meninas não fossem discriminadas à época, mas era uma imagem tão forte de um feudo masculino e tão poucas meninas jogando, que o preconceito não saltava aos olhos – a presença de meninas (ou a falta delas) não era sequer motivo de questionamento. Hoje, com o crescente número de jogadoras, o preconceito encoberto durante esse tempo começa a aparecer, assim como os questionamentos diversos sobre como a mulher é tratada (e retratada) nos videogames.

As mulheres têm sofrido discriminação quando jogam com homens (tanto meninas quanto adultas). É a mesma história de sempre: a mulher é vista como fraca e sem habilidade para jogar. Elas relatam ofensas, especialmente sexuais e queixam-se de serem preteridas nos jogos (por exemplo, nos jogos online) nos quais os homens saem dos servidores quando reconhecem um perfil feminino. Além disso, o problema não está apenas nos jogadores, mas também na representação feminina, tipicamente uma vítima impotente ou uma heroína hipersexualizada. São dois polos: um reproduz a imagem social do sexo frágil, e outro explorando a sexualidade como atrativo comercial.

Esses relatos me surpreenderam em parte, pois as experiências que eu mesmo passei e fui testemunha, como jogador, apontavam para o contrário: muitos homens sentem falta da participação feminina e também se queixam disso. Por outro lado, o universo dos games é em algum grau, um reflexo de nossa sociedade, assim como outros comportamentos virtuais sem relação com jogos. Portanto, espera-se que o machismo também apareça aqui. Como ocorre com outros preconceitos, é preciso que o agente do comportamento discriminatório consiga reconhecer a dignidade da vítima e se colocar em seu lugar. Se isso não ocorre de maneira espontânea, são necessárias ações da sociedade para reverter este quadro negativo.

Por parte das empresas, é preciso reconhecer a capacidade feminina de compreender o universo dos jogos eletrônicos e de trabalhar com eles, além de enxergar que a introdução feminina no desenvolvimento de jogos rejuvenesce a indústria, amplia o horizonte de possibilidades criativas e amplia um mercado apenas recentemente levado em consideração. Esse contexto pode parecer ruim, mas dá sinais de melhora. A emancipação feminina está em curso na vida em geral e ela se reflete na vida virtual e nos games. Pode-se eventualmente reclamar de morosidade desse processo, mas é fato que ele está em curso e veremos mudanças nos próximos anos.

É importante saber que, se existem jogos tipicamente masculinos ou femininos, os jogadores/jogadoras têm quebrado essa fronteira. Existia no Brasil até a década passada o grupo "Calcinhas também matam", que participava de torneios oficiais do Counter-Strike (jogo de tiro). Mas, se por um lado vem crescendo o número de mulheres participantes de jogos caracterizados como masculinos ou dirigidos ao público masculino, é provável também que as concepções de gênero acabem sendo revistas nos próximos tempos.

**Guilherme Teixeira Ohl de Souza é psicólogo do Núcleo de Pesquisa da Psicologia em Informática (NPPI) da PUC-SP.

Fonte: Vya Estelear.com