Nem Proust ou Funes, tampouco Ego

Duas passagens literárias são recorrentes nos escritos acadêmicos sobre a memória. Uma delas é de Marcel Proust, vivida pelo narrador de Em busca do tempo perdido.

Por Ramon Tissott

Caxias do Sul

O sabor de madalenas umedecidas de chá trazia de volta suas memórias abandonadas dos anos de infância. Quando, já adulto, colocou na boca a primeira colherada do bolo molhado com a bebida, o personagem foi tomado por um prazer delicioso que demorou a entender. Lembrou-se de sua casa de menino e da cidade em que experimentou as primeiras coisas da vida, e isso o deixou muito feliz.

Tão mencionada quanto o romance de Proust é a versão aguda da memória do conto de Borges sobre o jovem Ireneo Funes. Borges descreve um rapaz que não se dava com ninguém e lembrava-se de tudo, absolutamente tudo. Para recordar os acontecimentos de um determinado dia, por exemplo, ele demorava exatamente as 24 horas que aquele dia durara. Sua memória era tanta que não conseguia pensar, pois a lembrança detalhada de todas as coisas não deixava espaço na sua mente para a abstração. Funes tinha uma vida muito diferente dos outros rapazes. O excesso de lembranças atrapalhava sua vida, tirava seu sono. Morreu aos 19 anos.

Recordo agora de uma terceira referência à memória, menos erudita. O protagonista é Anton Ego, o amargo crítico gastronômico da animação Ratatouille. Ao provar um prato preparado pelo ratinho do filme, sua mente imediatamente o remeteu à infância vivida no interior da França. O sabor o fez lembrar do amor de sua mãe. Essa experiência transformou o comportamento de Ego, que passou a agregar valores perdidos do tempo de criança a suas atitudes. Tornou-se um adulto amável, deixou de ser vilão. Ao contrário de Funes, ao acessar sua memória Ego passou a viver mais intensamente sua experiência com o outro.

Os exemplos de Proust, Funes e Ego nos conduzem a compreender o trabalho da memória individual, quando o passado é evocado a partir de algum dispositivo subjetivo, muitas vezes de forma involuntária. Enquanto Funes era atormentado pelo excesso de detalhes alheios recordados, as experiências dos outros dois personagens convergem no fato da lembrança em si, o contato consigo mesmos.

Quando pensamos na memória coletiva, o funcionamento é parecido, mas o caráter político e a intenção de objetivar esse trabalho de rememoração ficam mais evidentes. A memória social constrói o passado, inventa-o, monta e remonta versões sobre o vivido pelo coletivo. Esse trabalho é direcionado por escolhas políticas, que definem aquilo que se quer esquecer e a imagem que se quer preservar. Não é o passado que é preservado, mas sim a memória. Essa memória coletiva é usada para reforçar as identidades de grupos sociais, que são construções históricas, resultado de processo de seleção, de inclusão e exclusão, não-natural.

Esse trabalho político de construção da memória coletiva busca ancoragens por meio da memória, preservando e celebrando vestígios do passado que sirvam para o trabalho da rememoração. Parte dessa ancoragem é buscada no que socialmente consideramos “patrimônio”, constituído pelo ambiente natural, que possibilita a vida humana, por artefatos e pelo conhecimento.

Na modernidade, a proteção do patrimônio cultural é vista no Ocidente como necessária para a conservação das características das sociedades. Na tradição dos povos europeus, a memória social depende da preservação sistemática de ambientes, produtos e saberes. Nessa perspectiva, a identidade dos grupos humanos passa, incondicionalmente, pela lembrança da experiência passada coletiva.

A preservação do patrimônio cultural em Caxias do Sul é um sério problema. Aspectos relevantes de nossa trajetória foram deliberadamente destruídos ou esquecidos por decisão política. O Poder Público, em várias oportunidades, decidiu omitir-se ou agir para favorecer o interesse de indivíduos, famílias e empresas, abrindo mão da preservação de edifícios com valor cultural reconhecido pela sociedade e por setores do próprio Estado.

O patrimônio tombado revela a identidade que as instituições do município decidiu preservar. Dos edifícios registrados do Livro Tombo, destacam-se duas categorias: indústrias e capelas. A iniciativa industrial e a religião católica foram os aspectos priorizados pela política de patrimônio caxiense. Para a visão que orienta os órgãos de memória, Caxias é, basicamente, uma cidade que produz e que reza. Os registros da cultura operária, das diferentes etnias que construíram a cidade, dos povos indígenas que habitaram a região por milhares de anos, dos múltiplos conflitos que marcaram nossa formação histórica são excluídos do patrimônio protegido.

Algum visitante literato e desavisado, assistindo à destruição que o patrimônio de Caxias sofre, poderia pensar que a cidade põe abaixo sua memória por medo de sofrer o mal de Funes. Mas não, a desmemoriada e pouco historiada Caxias do Sul não seria acometida por esse mal.

Se não houver uma mudança profunda na política de patrimônio, Caxias terá cada vez menos oportunidade de sentir o intenso prazer do narrador de Proust, recordando os primeiros tempos de cidade e seus personagens, quando o espaço público era amplo, os carros não impunham seu ritmo, o ar era quase puro e a luz do sol era distribuída democraticamente. Se não estancar o vandalismo das construtoras que depreda as nossas âncoras da memória, ou a ameaça que a hipertrofia da memória “italiana” impõe sobre a história milenar dos povos indígenas e diversidade cultural que caracteriza Caxias desde seu primeiro dia de vida, a cidade perderá para sempre a chance de se tornar mais humana e afável, como aconteceu a Anton Ego.

Fonte: O Pioneiro