Ismael Cardoso: NPND e o papel da tecnologia

Um dos principais componentes das forças produtivas da época de Marx, o trabalho humano, tem sido substituído pela tecnologia. Esta tecnologia não é neutra, ela representa um padrão de dominação e estabelece um novo enquadramento institucional; isto nos obriga atualizar profundamente o valor trabalho e a forma como encaramos a luta de classes.

Por Ismael Cardoso, da UJS

O Novo Plano Nacional de Desenvolvimento (NPND) apresenta o rumo correto, que é a construção do socialismo, mas o caminho talvez não esteja adequado ao atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

É óbvio que devemos desenvolver as forças produtivas para elevar as condições materiais do povo, mas isto por si só não emancipa a humanidade, ao contrário, do ponto de vista da tecnologia – esta grandiosa força produtiva – tem aprofundado a dominação capitalista.

Hegel e o espírito do mundo

Em Hegel podemos encontrar, ainda nos dias de hoje, grandes contribuições para o entendimento e proposição dos problemas das sociedades modernas. O pensamento hegeliano não tornou-se menor pela crítica marxista, Marx apenas o enquadrou na luta de classes, subverteu seu sentido mantendo seu núcleo duro.

O conceito hegliano do “eu” representa a autoexperiência do sujeito cognoscente, é a relação consigo mesmo, do sujeito que a si mesmo se sabe. Entretanto esta relação não é solitária, a autorreflexão resulta de uma interação entre dois sujeitos, o “eu” aprende a ver-se com os olhos do outro sujeito. Se estes dois sujeitos não se encontrassem não existiriam como tal, “o espírito (do mundo) é a comunicação dos particulares no meio de uma universalidade, como a gramática de uma língua em relação aos falantes”.

Quanto à relação ética Hegel tratou a partir da relação dos amantes: “no amor persiste ainda o separado, mas, já não como separado, como unidade, e o vivo sente o vivo”. Nas Lições de Iena Hegel elucida o amor como “o conhecer que no outro se conhece… cada um assemelha-se ao outro justamente por se lhe ter contraposto. O seu distinguir-se do outro é, pois, o seu equiparar-se a ele, e é conhecimento precisamente…”. Para Hegel o amor seria a reconciliação de um conflito prévio. O conhecer a si mesmo que exerce opressão e violência, mas que no amor se reconcilia.

É claro que esta relação ética pode ser quebrada, mas haveria uma consequência para o “criminoso”, pois a luta desencadeada pelas partes litigantes faz sentir a complementariedade perdida, alienando-se a si mesmo. Naturalmente nesta parte Hegel idealiza as relações humanas. Este tipo de relação social é inviável numa sociedade dividida em classes, era essa uma das críticas de Marx como já salientei acima.

O espírito do mundo é mais perceptível a olho nu quando falamos de linguagem e instrumentos. A linguagem só existe como linguagem de um povo, se para o “outro” fizer sentido tais representações. Já o instrumento permite ao trabalho sua permanência, é o mediador da relação sujeito e objeto. O instrumento permite ao trabalho elevar-se de sua subjetividade a algo universal, onde todos podem imitar.

A determinação do conceito de espírito está na relação dialética de simbolização linguística, de trabalho e de interação.

A crítica de Habermas, que utiliza o conceito de interação, tem muito das teses de Hegel e se dirige contra o que ele chama de ação racional teleológica e seus instrumentos técnicos.
Teleologia significa agir com determinados fins, usemos o exemplo da dominação da natureza: a dominação da natureza, utilitarista em sua essência, ao invés de ser um mecanismo de mediação entre os homens, torna-se um mecanismos de dominação dos homens pelos homens.

A razão teleológica no seu desdobramento prático seria, por exemplo, as políticas econômicas de um determinado Estado. A interação de Habermas se assemelha mais a conceitos afetivos, onde o objetivo é a relação em si, sujeito que se reconhece em outro sujeito.

A tecnologia não é neutra

Max Weber, a partir do “domínio” da técnica, desenvolveu o conceito de “racionalidade” como uma força crítica que vai paulatinamente ajustando o estado de coisas a um melhor enquadramento institucional. Entretanto, em sua conceituação não se implanta a “racionalidade” como tal, mas, em nome da racionalidade, uma determinada dominação política.

É que a tecnologia em si não é neutra como costumamos imaginar, este é um erro que a própria esquerda ainda não percebeu, ou pelo menos não com a dimensão que o problema tem. A técnica é ela própria uma forma de dominação “metódica, cientifica, calculada e calculante”. A técnica como forma de organizar a sociedade é consequência de uma percepção de mundo, por tanto, de uma percepção de dominação da natureza e da sociedade em geral.

Hebert Marcuse chegou a afirmar que a dominação tende a perder o seu caráter explorador e opressor, tonando-se racional. A verdade é que olhando pelo retrovisor da história, de fato o avanço colossal das forças produtivas e o crescente domínio da natureza proporcionou uma vida mais confortável para a humanidade, mas isso não elimina a dominação política, o que ocorre é que a percepção de dominação se desvanece na consciência assumindo um novo caráter e legitimação, “racional” e “técnica”.

A tecnologia foi, e ainda é, uma força crítica do Estado caduco, entretanto, ao se impor vai além do papel de força crítica, passa a ser o critério apologético, donde todas as próximas mudanças se basearão, de onde sairá um novo enquadramento institucional e no qual a própria critica racional de Weber é neutralizada rebaixando-se a mero corretivo do sistema. “Hoje, a dominação eterniza-se e amplia-se não só mediante a tecnologia, mas como tecnologia; e esta proporciona a grande legitimação ao poder político expansivo, que assume em si todas as esferas da cultura”.

Modificar esta realidade requer-nos um funcionamento sob outros parâmetros, requer substituir a razão teleológica pela interação, que permita uma “comunicação sem coação”, onde a humanidade pudesse reconhecer na natureza outro sujeito, tratando-a como interlocutora, e desta maneira subverter a lógica de dominação da natureza, que tem como consequência a própria dominação dos homens.

Atualizar o conceito valor-trabalho e a luta de classes em Marx

O Estado, com a intenção de regular as deficiências do sistema, elevou imensamente sua intervenção sobre a economia capitalista, bem como nas inovações tecnológicas, visto que no início do capitalismo as pesquisas científicas eram financiadas principalmente pelo capital privado.
Como consequência da intervenção estatal, a investigação técnica ganha uma crescente interdependência, que transforma, com o passar do tempo, as ciências na primeira força produtiva, fazendo cair as condições de aplicação da teoria marxista do valor-trabalho, “já não mais tem sentido computar os contributos ao capital para investimentos na investigação e no desenvolvimento sobre a base do valor da força de trabalho não qualificada (simples), se o progresso técnico e científico se tornou uma fonte independente de mais-valia frente à fonte de mais-valia que é a única tomada em consideração por Marx: a força de trabalho dos produtores imediatos tem cada vez menos importância”. Um novo marco institucional surge, diferente do marco institucional do liberalismo tradicional da época de Marx.

Numa passagem no início de O Capital é possível ver um prenúncio desta substituição de forças produtivas, “após a introdução, por exemplo, do tear a vapor na Inglaterra, bastava metade do trabalho de antes para transformar em tecido uma dada quantidade de fios”. A questão é que neste exemplo é possível calcular as horas de trabalho, mas, com o avanço da técnica, o que antes se podia calcular comparando horas de trabalho simples com produção automatizada já não é mais possível, o trabalho simples foi reduzido ao mínimo possível, tornou-se quase invisível na grande produção capitalista.

A partir das duas tendências centrais do capitalismo (compensações estatais e interdependência da técnica) o próprio conceito de luta de classes deve ser atualizado. As compensações do Estado e a própria substituição do trabalho simples pelo complexo (automatização) da produção diminuem a sensação de dominação de uma classe sobre outra, isto não significa um cancelamento da luta de classes, mas, uma latência das oposições de classe. A dominação política do capitalismo se transfere para a fachada distributiva compensadora do Estado, deslocando a própria luta de classes para o campo dos direitos das minorias, ao invés da luta tradicional de classe contra classe.

Uma nova forma de ideologia nasce a partir de então, bastante vítrea, onde o simples avanço das forças produtivas por si só não representa consequências emancipadoras, do qual entrariam em colapso as legitimações de dominação capitalista. Pois, a primeira força produtiva, que é a técnica e a ciência, são a própria forma de controle e legitimação da dominação, “esta nova forma de dominação perdeu, sem dúvida, a velha forma de ideologia” .

É claro que precisamos refletir um pouco mais, este artigo busca provocar o debate, afinal, qual seria a alternativa de libertação da humanidade sem a tecnologia criada pelo capitalismo?
O capitalismo é o sociometabolismo do capital, a questão, a saber, é se estamos apenas combatendo o sistema sociometabólico.