Ocupação propõe ‘nova vida’ a famílias da zona sul de São Paulo

Depois de despejados com truculência policial em meados do ano passado, os moradores do Jardim da União – na Zona Sul da capital paulista – partem novamente para a luta pela moradia e propõem novas relações entre vizinhos, com mutirões, cooperativas, espaços culturais coletivos e hortas comunitárias. Eles dão exemplo de como pode ser o processo de ocupação em outras comunidades. Todos ajudam e todos colhem os bons frutos deste projeto.

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São quatro cômodos. Uma sala, onde três crianças brincavam, com dois sofás de dois lugares e um móvel para televisão. Dois quartos, um para o casal e a filha Daniele, de 3 anos, outro para os dois meninos, Marcos, 6, e Daniel, 5. Deixar o calçado na porta é fundamental, porque a casa tem carpete em todos os aposentos. No fundo, uma lavanderia, ainda a céu aberto, com uma caixa d'água de 500 litros que serve a cozinha e o banheiro, que já está no contrapiso. Para Juciara Maria de Jesus, de 24 anos, que chegou há dois meses com o marido Domingos Souza, de 33, a felicidade que sente não pode ser descrita.

“Melhorou para todos nós, principalmente para as crianças. Tinha móveis que eu nem podia usar na outra casa, porque não cabia, e ficou amontoado na minha sogra…”, dizia Juciara, quando parou a descrição entre um sorriso tímido e olhos marejados, olhando Daniele brincar na sala e os meninos desaparecerem correndo pela porta da frente.

Antes, ela vivia em uma casa de dois cômodos, no Jardim São Rafael, extremo sul de São Paulo, pagando R$ 400 de aluguel. O salário de R$ 1,3 mil do marido, trabalhador da construção civil, sempre minguava antes do fim do mês e a situação parecia não ter perspectiva de melhora. Mas, há um mês, a família se mudou para a nova casa, que levou dois meses para ser construída.

No entanto, a descrição não trata de uma residência convencional, de alvenaria, menos ainda de uma construção do programa Minha Casa, Minha Vida. A moradia de Juciara é um dos 600 barracos distribuídos em uma área de 84 mil metros quadrados, feitos de madeirite, pontaletes e telhas, na ocupação Jardim da União, no bairro Mangue Seco, no Grajaú, extremo sul da capital. “A gente morava num porão. A casa era abaixo do nível da rua, mofava muito, e não tinha onde as crianças brincarem. Agora é tudo diferente. Nós adoramos esse lugar”, relata Juciara.

Não que os problemas sejam inexistentes. As telhas, em geral doadas, têm rachaduras e as goteiras são frequentes. Quando chove forte, a enxurrada ainda passa pelas laterais de muitos barracos, que estão direto no chão de terra. Por isso a maior parte dos moradores investiu em fazer, ao menos, o contrapiso dos barracos.

A ocupação tem pouco mais de três meses e foi iniciada em 12 de outubro do ano passado. Boa parte dos moradores são remanescentes da ocupação em um terreno no Jardim Itajaí, iniciada em 27 de julho, a cerca de cinco quilômetros da nova área. Após seis despejos, sendo o último cheio de relatos de truculência, sumiço de pertences, uso de força excessiva pela Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana, com bombas de efeito moral e balas de borracha, as famílias decidiram mudar de local.

À época do despejo, a subprefeita da Capela do Socorro, Cleide Pandolfi, afirmou que não iria permitir uma nova favela na região. Porém, essa ocupação passa ao largo do estereótipo.

Todos os moradores foram cadastrados em uma lista de controle. Cada grupo tem um coordenador, que é escolhido pelos vizinhos e fica dois meses nesta fundação.

A Rede de Comunidades do Extremos Sul de São Paulo, que organiza a ocupação, está negociando com a prefeitura de São Paulo e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU) para estabelecer moradias populares na área. Em outra frente, em parceria com a Usina – coletivo de arquitetura –, a Rede está desenvolvendo um projeto habitacional compatível com o terreno e a área verde.

Enquanto isso, os moradores vão construindo um novo bairro. A rua de entrada é larga, assim como as que cortam as áreas centrais dos dez grupos. Cada barraco pertence a um desses grupos e tem numeração própria. Todos os barracos têm energia elétrica, puxada de um dos três pontos em que os eletricistas locais fizeram ligações gerais. A água encanada também é encontrada em todas as moradias, no mínimo, em uma pia na cozinha. Alguns barracos têm até chuveiro elétrico.

A energia passa por postes improvisados, a cerca de três metros de altura. Alguns têm lâmpadas para iluminar a passagem. Pendurado em um dos pontos de energia, o eletricista Deilson Alves de Oliveira, 40 anos, que há 20 trabalha no ramo, passava uma nova fiação pelo terreno. “Estamos distribuindo melhor para não ter risco. Conseguimos doação dos próprios moradores e arrecadamos dinheiro fazendo bingos. Com isso pudemos comprar a fiação adequada para evitar queda de energia e perigo de incêndio”, explicou.

Os banheiros se destacam. Item problemático pelo risco à saúde, a maioria aqui está no contrapiso e tem descarga. Os que não têm o dispositivo mantêm tambores com água e um baldinho para garantir o serviço. A limpeza deles não deixa nada a desejar. Todos os moradores fizeram fossas sépticas e não há qualquer rastro de esgoto correndo pelo terreno.

Além do esgoto, o lixo também tem recebido atenção, tanto que a área é bem limpa. Há lixeiras coletivas distribuídas pela ocupação e todos sabem o dia que o caminhão passa. Porém, ainda há problemas. É grande o número de locais marcados pela queima de resíduos, como forma de dar fim ao que ficaria acumulado.

Viver bem inclui comer bem. E nesse ponto os moradores do Jardim da União estão investindo e trabalhando, num retorno às origens. “Meus pais plantavam. Muitos aqui vieram do interior, trabalharam na agricultura”, explicou a acompanhante de idosos Maria Lucineide Ferreira, que terminava o plantio da segunda horta comunitária da ocupação.

A primeira, já em fase de colheita, tem alface, cebolinha, coentro, escarola, abóbora, maxixe, pimentão, algumas ervas medicinais e até pés de melancia. Sem usar agrotóxicos, os moradores têm feito compostagem com as sobras de alimentos consumidos.

“A horta não é particular, é para a comunidade. Todo mundo ajuda e come. E por isso mesmo, ninguém bagunça”, contou Raimundo Rodrigues, que também tem um bar, onde vende produtos de limpeza, doces e salgadinhos, e cachaça, que, claramente não pode faltar.

“Veja mais uma branquinha, então, que agora nós vamos fazer um som”, pede um morador, antes de correr para os instrumentos que ele faz questão de mostrar para a reportagem. A ideia é mobilizar um carnaval na ocupação e criar uma bateria de escola de samba, guardadas as proporções. Mas, enquanto não fica oficial, os moradores vão se divertindo, inclusive as crianças.

Segundo o coordenador Mariano Pereira de Moraes, 43 anos, cada pessoa tem ajudado com o que sabe. E o local é uma verdadeira mina de profissões: há pedreiros, eletricistas, encanadores, mecânicos, músicos, agricultores, cuidadores de saúde, cozinheiras, costureiras, grafiteiros e até professor de espanhol que está dando curso gratuito no terreno. “Mas ele trabalha de dia. As aulas são na segunda à noite e sábado à tarde.”

Não falha também a realização de um culto evangélico toda sexta-feira, às 19h, na praça da ocupação. “Para acalmar os ânimos e agradecer por mais uma semana”, explicou Mariano.

A ocupação possui ainda dois barracões destinados às atividades socioculturais. Ontem funcionava a oficina de grafiti, que é para todas as idades. Os moradores pretendem ainda começar turmas de alfabetização, computação e uma rádio comunitária. Tem também uma cooperativa popular, que começa a ganhar corpo com costura e estamparia.

Fonte: Rede Brasil Atual