José Carlos Mariátegui: 120 anos de existência

Em 14 de junho de 1894, em uma pequena cidade situada no sul do Peru, a mais de mil quilômetros da capital, nasceu José Carlos Mariátegui Lachira, que seria, talvez, o mais ilustre pensador peruano do século 20.

Por Gustavo Espinoza M.*, no Diálogos do Sul

Filho de mãe modesta, enfrentou problemas desde seus primeiros anos. Sendo ainda uma criança, em 1902 e numa brincadeira infantil, caiu e fraturou uma perna que o obrigou a um tratamento médico complicado e difícil, durante o qual se descobriu uma delicada lesão óssea que, finalmente, o conduziria à morte prematura.

Nesses anos de dolorida infância afloraram suas primeiras experiências vitais: a criança José Carlos, interno em uma clínica francesa –L’Maison de Santé – em Lima, teve como companheiros de infortúnio pessoas mais velhas de origem francesa. Com elas se aproximou ao idioma de Voltaire e tomou contato com a literatura que influiu decisivamente em sua opção de vida. Provavelmente nesses anos nasceu sua vontade de conhecer Europa onde anos depois teve ocasião de realizar suas principais experiências vitais.

Premido pelas dificuldades materiais de um lar precário e pela enfermidade que corroía seu frágil organismo, José Carlos não pode continuar seus estudos na escola primária e não encontrou melhor alternativa que ater-se à formação autodidata que foi chave para seu horizonte intelectual e humano. Nesse lapso fez seus primeiros contatos com o mundo gráfico ao ingressar a trabalhar como ajudante de linotipo no jornal La Prensa de então. Suas ascensão foi rápida e logo, em 1914, começou a publicar seus próprios escritos com o pseudônimo de Juan Croniquier.

Um fato excepcional que mudou a face do mundo se perfilou também no cenário de Mariátegui: A Revolução Russa de 1917. Observou-a de longe e soube dela através do inquieto teletipo. Acompanhou com especial interesse a figura de Lenin, a quem considerou depois como a mais elevada figura do novo século.

Em 1918 – confessaria depois – “nauseado da política cabocla”, orientou-se “resolutamente em direção ao socialismo”. Atento ao que ocorria no país, o sentinela da direita de então começou a polemizar editorialmente contra o jovem Mariátegui e seus companheiros qualificados como, “os bolchevistas peruanos”. O jovem José Carlos responderia reafirmando sua origem e também suas ideias: “bolchevista peruanos, sem, porém, sobretudo, peruanos”.

Em 1919 José Carlos já era um jornalista destacado que colaborava com diversas publicações. Nas páginas do diário “El Tiempo”, somou-se à reivindicação operária pela jornada de oito horas, que culminou com a primeira histórica vitória dos trabalhadores. Eles agradeceram o apoio e desfilaram até as instalações do jornal para deixar o testemunho de sua gratidão. Foi esse o primeiro elo que atou a vida de Mariátegui com a luta constante dos trabalhadores, a qual acrescentaria outros marcos mais adiante.

Foi essa relação do jornalista com os primeiros sindicatos que assustou o regime de então que urdiu uma ideia: afastar Mariátegui do Peru enviando-o a cumprir funções oficiais em Roma. Uma espécie de exílio imposto pelas circunstâncias que o atingido utilizou não em proveito da classe dominante mas sim da classe operária, de sua organização e de suas lutas.

Assim se iniciou nova etapa na atividade de Mariátegui. Sua estância europeia, que lhe permitiu conhecer países como França, Itália, Alemanha, Hungria entre outros mas, sobretudo serviu para assimilar experiências. Ficou fascinado pelos dois fenômenos contrapostos: a ascensão das lutas da classe operária no marco da chamada “a revolucionária de 20”, sequela natural da Revolução Socialista de outubro, e, o surgimento do fascismo como contrapartida às expectativas dos povos.

A Insurreição de Vladaya em 1916, a Revolução Alemã de 1919, a República Húngara dos Conselho, uniram-se na observação de Mariátegui às grandes greves operárias na França, Itália e outros países. Paralelamente o fascismo –a ditadura terrorista dos grandes monopólios, na definição certeira de George Dimitrov – inchado pelo êxito de sua “Marcha sobre Roma”, constituiu no ponto de partida para o que seria anos mais tarde a grande conflagração mundial – a Segunda Grande Guerra.

Todo esse convulso cenário foi apreciado de maneira direta por Mariátegui que, por sua vez, estudou o processo de formação dos Partidos Comunistas e Operários, aos que atribuiu uma singular importância estratégica. Sua participação no Congresso de Livorno – onde esteve também Dimitrov como responsável do Bureaux da Internacional Comunista para Europa Ocidental – e sua relação direta com Antonio Gramsci e “L ‘Ordine Nuevo” permitiu perscrutar o horizonte com novas luzes e mais amplas perspectivas. Ficou desse modo aberto o caminho para seu regresso ao Peru e sua atividade no retorno.

Quando em março de 1923 Mariátegui reingressou na vida peruana, integrou-se às Universidades Populares Gonzáles Prada como uma maneira prática e direta de retomar seus vínculos com o movimento operário. Por isso também assumiu a direção da revista “Claridad”, “porta-voz dos estudantes livres”, e a converteu em “órgão da Federação Operária Local”; em 1924 publicou seu artigo “O primeiro de maio e a Frente Única”. O agravamento de sua enfermidade, contudo, derrubou-o novamente o obrigou os médicos a lhe amputar a perna.

A partir de 1925, Mariátegui teve uma atividade da mais fecundas. Esse ano publicou “A cena contemporânea” e “A novela e a vida” , refletindo suas experiências acumuladas na viagem pela Europa. E imediatamente depois ingressou na reta final da existência a que Jorge del Prado chamaria “seus anos culminantes”.

Nesse rico período, de fato, corresponderia o eixo essencial de sua obra: a fundação da revista Amauta, que apareceu em setembro de 1926, a fundação do Partido da Classe Operária que, com o nome de Partido Socialista, naceu em outubro de 1928, sua partipaçao na I Conferência de Partidos Comunistas e Operários da América Latina, celebrada em Buenos Aires em 1929, e a função da Central Geral dos Trabalhadores Peruanos (CGTP), em maio desse mesmo ano. Todas essas ações, sem dúvida, constituíram pontos de partida para experiências vitais que sacudiram a vida nacional nos anos seguintes.

Essas ações não se deram em cenário idílico. Não transcorreram em ambiente bucólico nem paradisíaco. Desenvolveram-se em meio à violenta confrontação social quando o regime de Leghia – que representava de maneira inequívoca os interesses da classe dominante – tentou perpetuar-se na contramão da vontade cidadã. Nesse período é de recordar-se a repressão contra o próprio Mariátigui e seus companheiros. Preso e confinado no Hospital San Bartolomé, com seus colaboradores mais diretos às cárceres da Ilha San Lorenzo, foram todos vítimas do primeiro “complot comunista” urdido como uma provocação pelo governo de então contra os trabalhadores e o povo.

A agonia de Mariátegui –na expressão de Miguel de Unamuno- foi por certo difícil e complexa. Reprimido pela polícia e acossado pelas autoridades, teve de suportar o agravamento de sua saúde e a precariedade de seu jovem entorno político que ainda não estava preparado para enfrentar as mais duras provas.

A morte do Amauta, ocorrida em 16 de abril de 1930, deu lugar às maiores manifestações populares desse período. Milhares de peruanos carregaram o ataúde envolto numa bandeira vermelha, pelas principais ruas da cidade capital até o Presbítero Maestro. As colunas se deslocavam cantando a Internacional e expressando a dor pela sentida perda.

Por outro lado, à vida peruana e o processo de formação do pensamento latino-americano, José Carlos Mariátegui é considerado hoje o mais importante pensador marxista do século 20. Seu nome vive no clamor das multidões e suas ideias ganham constante presença nos mais amplos círculos de nosso continente. Valorizando sua importância, Gonzalo Rose, o poeta, diria:

Amigos, el, es nuestro Lenin

Sólo le falta su octubre rojo;

Pero con cada día que transcurre,

Octubre está más cerca de su víspera

Em tradução livre:

Amigos, ele, é nosso Lenin

Só lhe falta seu outubro vermelho;

Porém com cada dia que passa,

Outubro está mais perto de sua véspera.

* Da equipe de colaboradores de Diálogos do Sul – Secretário geral da Associação Amigos de Mariátegui (Casa Mariátegui) e membro do Coletivo de Direção de Nuestra Bandera (www.nuestra-bandera.com)