Coletivos venezuelanas seguem apoiando a Revolução Bolivariana
Partindo do princípio de que um amigo fragilizado não deve sofrer críticas, coletivos chavistas estão realinhando o discurso. É uma longa fase de adaptação iniciada em 5 de março do ano passado, quando morreu Hugo Chávez, e catalisada pelas marchas promovidas pela oposição ao longo de fevereiro.
Por João Peres, da Rede Brasil Atual
Publicado 01/03/2014 14:53
“Chávez era um 'monstro' no âmbito político mundial. Não tinha enfrentamento possível dentro da Venezuela. Mas sem ele a situação política muda”, diz Glenn Martínez, líder comunitário de Cristo Rey, um dos bairros que formam a favela 23 de Enero, xodó do chamado comandante da Revolução Bolivariana.
Cego há cerca de quatro anos por conta de um glaucoma, Glenn, de 41, já não pode se valer do visual privilegiado que se tem aqui, do alto do morro, de onde se observa uma grande porção da Caracas pobre, e as enormes montanhas que vigiam o vale em que se ergueu a capital venezuelana. Mas isso nem parece lhe fazer falta: só necessita que alguém diga onde está para começar a apontar com precisão cada local e contar histórias.
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O colégio Manuel Palacios Fajardo, no fim do barranco, foi escolhido por Chávez para votar nos 17 processos eleitorais pelos quais passou – vitorioso em 16. Atrás da igreja Cristo Rey, que dá nome à comunidade, há uma praça muito bem cuidada, com uma concha acústica que hoje leva o lema “Ao passado não voltaremos jamais! Proibido esquecer”.
Impossível. 23 de Enero guarda as cicatrizes pré-chavismo, consequências de uma favela nascida, crescida e mantida na rebeldia. O bairro começou a surgir como tal em dezembro de 1957, quando o governo do ditador Marcos Pérez Jiménez começou a entregar os 55 blocos de edifícios destinados a moradia dos integrantes das Forças Armadas. Derrubado o presidente por um golpe de Estado, no início do ano seguinte, a população pobre correu para ocupar aqueles espaços e dar início a uma longa trajetória rebelde, que teve no próprio batismo da comunidade, a data de queda de Jiménez – 23 de janeiro. Uma primeira marca desta peculiar característica, que não seria bem aceita pelos sucessivos governos, que responderiam com torturas e desaparecimentos.
O local em que se instalou 23 de Enero lhe garante uma diferença enorme em relação às demais favelas de Caracas. A começar pelos apartamentos, que são amplos para os padrões caraquenhos, com até quatro quartos e uma sala espaçosa. As construções até hoje estão firmes, sem sinais de avarias graves (num país com terremotos), e agora vêm ganhando uma nova pintura, patrocinada pelo governo federal. As cerca de 80 mil pessoas que vivem ali contam com uma infraestrutura que talvez não se repita em nenhuma comunidade pobre latino-americana: como foi criado para ser um bairro para militares, e não para os mais pobres, conta com espaços para mercados, escolas e equipamentos culturais.
Como o teatro com capacidade para 498 espectadores em Cristo Rey. O espaço ganhou do governo uma reforma, e agora tem cadeiras novas e acolchoadas, tapete, palco, ar condicionado e placas acústicas. Glenn conta que a ideia é montar um ciclo de exibição de filmes para crianças, mas “nada de missão revolucionária não sei das quantas”. Ele prefere películas sem temas ideológicos muito à flor da pele, que poderiam ser exibidas em qualquer sala da cidade. “Um pouco mais de capitalismo selvagem, ou melhor, de socialismo selvagem”, brinca.
Ao lado do teatro está o estúdio da Rádio 23, Combativa e Libertária, que na verdade é uma sala com isolamento acústico improvisado, uma mesa na qual se apinham entrevistadores e entrevistados e um televisor velho com mais chuviscos que cores. Assim como o projeto pensado para o cinema, a Rádio 23 se tornou uma das mais ouvidas em Caracas não pelo tom revolucionário, mas por tocar salsa, o ritmo preferido dos venezuelanos, sem intervalos comerciais nem falas. Quando o público já estava formado, aí entraram programas com um caráter mais político, que agora estão sob reavaliação.