Mirandinha – O Embaixador da Copa do Ceará
Garoto pobre do Lagamar, Mirandinha arriscou tudo por um sonho. Tornou-se o primeiro brasileiro a jogar na Inglaterra e, na "marra", aprendeu três idiomas para poder sobreviver.
Publicado 21/04/2014 12:25 | Editado 04/03/2020 16:27
Com voz pausada, paciente e de forma didática, Francisco Ernandi Lima da Silva, 54, é responsável por receber e ciceronear todos os dias dezenas de visitantes que se dirigem à Arena Castelão. Em dois anos e meio desde a inauguração do espaço, já foram mais de 19 mil pessoas que conheceram o local através dessas visitas. Na sua fala, destaque para a história do futebol cearense e um pouco sobre os passos da construção do estádio. A atenção do público vai aumentando, porém, quando passa a tratar de sua própria trajetória como jogador profissional. De garoto pobre do Lagamar, filho de um salineiro e de uma dona de casa que tiveram oito filhos, Mirandinha apostou tudo em seu sonho. As circunstâncias o fizeram , ainda amador, fugir com a delegação de um time paulista que veio jogar em Fortaleza. Anos depois entraria na história como o primeiro brasileiro a jogar na Inglaterra, o que lhe rendeu elogios da Rainha. História marcada ainda por passagens em várias categorias da seleção brasileira, grandes times nacionais e o aprendizado de três línguas estrangeiras, apesar de só ter o ensino fundamental no Brasil.
Mirandinha, queria que falasse como começou sua trajetória.
Iniciei jogando como todo garoto, principalmente naquela época em que haviam muitos campos para se jogar futebol, por volta de 1972, 73, ali na Aerolândia, no Lagamar mesmo, nos campinhos que a gente armava. Depois tive passagem rápida pelas categorias de base do Maguary, que treinava ali no 23° BC. Sou filho de um salineiro, ali das salinas do Cocó. Minha mãe uma pessoa bacana que sofreu muito pela falta de recursos para tocar a vida e sou de uma família de oito irmãos, quatro mulheres e quatro homens. Sou o segundo da escadinha. Lutei muito pela vida. Lembro bem que mesmo jogando no Maguary, trabalhava em um sinal na avenida 13 de Maio vendendo fruta, tubinho de desodorante, que e a gente misturava com água e sabão, e lavando carro.
E o tempo para o estudo?
Estudava precariamente. Era à noite, ali na Aerolândia, na Escola Circulista Bom Jesus, que tem até hoje.
Até então jogar futebol era uma coisa natural. Como entrou a questão do futebol profissional?
Eu comecei a perceber que podia jogar futebol verdadeiramente no período em que já jogava nas escolinhas do Maguary, e um belo dia, acompanhava um time lá da Aerolândia, chamado Dragão Alvinegro, que era de um amigo do meu pai, que era o árbitro dos jogos. Nesse jogo faltou um jogador do segundo quadro, e o seu Antônio, que era o dono do time, falou para mim: ‘bota o uniforme você e vai jogar’. Botei, todo desajeitado, calção enorme, meia caindo, enfim. E eu comecei a jogar no meio de adultos e fui tomando gosto. Era bem garoto, raquítico, tinha dificuldade de alimentação, essa coisa toda, e fiz um gol naquele jogo. Comecei a perceber que tinha a oportunidade de tentar algo mais. Foi no mesmo período que eu sai do Maguary e fui para o Ceará, levado pelo Alexandre Albuquerque (treinador das categorias de base). No Ceará eu apareci muito bem, fazia muitos gols, mas infelizmente, pelo fato de ser um garoto pobre, humilde, perdi espaço, porque o pessoal que era de colégios particulares era preferido. Fui mandado embora e fui parar no Fortaleza. E lá foi desastroso. Fiz apenas um jogo pela escolinha e fui mandado embora em seguida.
Pensou em parar com o futebol?
Pensei. Tinha 15 para 16 anos e quase desisti, porque nesse único jogo que fiz pelo Fortaleza, simplesmente com o braço quebrado, o jogo foi 12 x 1 para o Fortaleza, e eu fiz sete gols. E quando eu voltei, tirei o gesso, fui mandado embora. Passei a me voltar mais a estudar e trabalhar. Já trabalhava de auxiliar de carpintaria, envernizando móveis para uma pessoa que fabricava móveis perto da minha casa. Foi quando me deu algo na cabeça de tentar alguma coisa no Ferroviário. E foi o que fiz. Sai sozinho um dia lá de casa, botei minha chuteirinha em um saco e fui tentar a sorte no Ferroviário. Cheguei lá, pedi para treinar e me deixaram. Então tive essa oportunidade na escolinha e comecei a fazer muitos gols. Ai começou a despertar o interesse do profissional do Ferroviário. Um dia a Ponte Preta (time profissional de Campinas) veio jogar aqui com o Ceará, no Castelão, e eu recebi um convite para me encontrar com os diretores da Ponte no hotel que eles estavam. Nesse mesmo dia a Ponte Preta decidiu me levar embora.
Até hoje não ficou bem clara essa sua ida. Há até o folclore de que foi sequestrado. Como se deu isso?
Na verdade, a Ponte Preta me fez o convite porque já sabia do que eu vinha fazendo no juvenil do Ferroviário. Quando da vinda deles para o jogo contra o Ceará, um garoto que ajudava o roupeiro da Ponte Preta lá no San Pedro Hotel, foi na Barra do Ceará e falou para mim: ‘oh, eu vim aqui porque o pessoal da Ponte Preta quer conversar contigo lá no hotel’. Acabei o treino no Ferroviário e fui. Quando cheguei lá, o doutor Pery Chaibe, que foi um dos grandes diretores da Ponte Preta, chegou e disse: ‘olha, a gente sabe do que você vem fazendo, nós temos um grande amigo aqui que nos passa tudo´, era o doutor Mauro Fernandes, que fundou a Funerária Paz Eterna, ele era de Campinas e tinha passado muitas informações minhas para o pessoal da Ponte Preta. E ai falei que tinha interesse e se fosse possível eu iria. E resolveram me levar.
Isso tudo decidido em poucas horas?
Dormi aqui e acordei em São Paulo. Naquele dia, por incrível que pareça – eu fui para o jogo no Castelão. É porque é o seguinte: acabou o treino no Ferroviário, fui para o hotel, jantei com eles e fui com a delegação para o jogo. Naquele mesmo dia encontrei nas cadeiras do Castelão o presidente do Ferroviário à época, Chateaubriand Arraes Leite. Ai falei para ele: ‘doutor, esse pessoal aqui é da Ponte Preta, eles querem conversar com o senhor porque eles querem me levar”.
O que foi que o presidente Chateaubriand falou?
Ele olhou para mim e falou assim: ‘Mas a Ponte Preta quer te levar para quê, para ser roupeiro’? Porque no Ferroviário eu era roupeiro, eu jogava no juvenil, mas fazia o trabalho de roupeiro para ajudar em casa. Quando falou isso eu disse: ‘é presidente, deve ser para roupeiro, mas eu vou assim mesmo’. Fiquei no estádio, acabou o jogo da Ponte Preta, voltamos para o San Pedro Hotel, e chegando lá, quando falei para eles – porque o Chateaubriand disse no Castelão que eu não iria para a Ponte Preta, porque estaria acertando tudo com o Guarani de Campinas. Quando o pessoal da Ponte ouviu o nome Guarani, principal rival deles, eles deram um pulo e disseram: ‘não, você vai é para a Ponte Preta’. Ai compraram a minha passagem para voltar junto com a delegação e me botaram no voo de manhã. Me deram como se fosse hoje R$ 500, mandaram ir para casa arrumar a mala e se apresentar de manhã no aeroporto.
Como explicou isso em casa?
Foi um Deus nos acuda. Meus pais não acreditaram, eu nunca tinha chegado em casa depois da meia-noite, e nesse dia cheguei quase às duas horas da madrugada, e dizendo que estava indo embora para Campinas. Foi um chororô só, minha vô, minha mãe. Meu velho, não, porque ele era seguro nas coisas dele e não tinha essa história de choro, não. Mas me mantive firme. Era a minha oportunidade e tinha que ir embora.
Como de fato alçou voo no futebol?
Um dia eu estava sentado lá no estádio da Ponte Preta, e ia ter o jogo Ponte Preta e Flamengo do Piauí, e a preliminar era Ponte Preta e Santos, no sub-21. Eu estava sentado atrás do gol, no Moisés Lucarelli, quando os meninos começaram a passar com as cestas nas mãos para irem se trocar para o jogo. O diretor chegou para mim e falou: “vai pegar seu material que sua carteirinha (documentação) chegou, da Federação Paulista”. Me deu um calafrio. O treinador me escalou e meti logo dois gols no Santos, que era um time poderoso, tinha cinco jogadores da Seleção Brasileira de Juvenil. Meti dois gols e ganhamos de 3 a 1. Caí na graça mais ainda da diretoria, da torcida; foi quando – não esqueço – no dia 1° de maio, Dia das Mães, nós tínhamos um jogo no Morumbi, contra o juvenil do São Paulo, que também era poderosíssimo, e eu cheguei no Morumbi, e naquela época já era bocudo, prometendo um gol para as mães e fiz o gol. Ganhamos do São Paulo, de um a zero, no Morumbi, numa preliminar de um jogo do São Paulo. Logo em seguida, por incrível que pareça, lembro que era 1978, estava passando pelo Brasil a Seleção da Tunísia, que ia jogar a Copa da Argentina, e estavam fazendo seus amistosos no Brasil. E caiu deles terem esse amistoso com a Ponte Preta, no Moisés Lucarelli. A Ponte estava num problema sério. Os atacantes, uns não faziam gol; outros estavam machucados… aí fui relacionado para ir no banco, no amistoso. Pior que entrei no final do primeiro tempo, tinha uns 40 minutos. No início do 2° tempo eu fiz o gol que deu a vitória a Ponte Preta. Dali pra frente minha vida mudou completamente, porque passei a ser reserva imediato no time principal, do Jacaré, que era o atacante principal da Ponte. O Jacaré era o Dadá Maravilha. Passei a jogar o Campeonato Brasileiro, o que não era comum para um jogador de 18 anos.
No profissional você jogou em quais outros times no Brasil?
Eu joguei no Botafogo do Rio de Janeiro, de onde sai para o Náutico (Recife), em 1983; joguei um ano e meio. Do Náutico eu fui para a Portuguesa; fui emprestado um mês para o Santos, numa excursão no Japão, Estados Unidos e México. Quando voltei da excursão, o Santos não me comprou e a Portuguesa me emprestou, por seis meses para o Cruzeiro (Minas Gerais); fiz muitos gols pelo Cruzeiro, mas não houve acordo financeiro entre Portuguesa e Cruzeiro. Foi quando o Palmeiras me comprou no início de 1986 e aí eu joguei dois anos e meio no Palmeiras. Depois fui embora para o New Crash da Inglaterra.
A seleção brasileira entra em que período?
A primeira convocação para a seleção foi no Náutico. Era a Seleção de Novos, que foi disputar o Torneio de Toulon, na França, e nós fomos em busca do tri – voltamos com ele -, fomos tri campeões. Voltei para o Náutico e começou a despertar o interesse de grandes clubes do Brasil pela minha aquisição. Daí surgiu a Portuguesa, onde fiquei de meados de 1984 até 1985. No retorno do Cruzeiro eles me negociaram com o Palmeiras. Do Palmeiras eu fui convocado. Aliás, eu já tinha sido convocado, mais uma vez, pelo Náutico, para o pré-olímpico no Equador, para os jogos de Los Angeles e, quando voltei, fiquei supervalorizado no Náutico. Foi quando me negociaram com a Portuguesa, e aí voltei a ser convocado em 1987. Já estava no Palmeiras, mas na seleção pré-olímpica. Fomos para o pré-olímpico, na Bolívia, fui campeão e bi artilheiro pré-olímpico (pois já tinha sido antes, no Equador). Depois disso veio a minha primeira convocação para a Seleção Brasileira principal, jogando pelo Palmeiras, para a Copa Stanley Rous, disputada no Reino Unido, a cada dois anos. Eu simplesmente fiz o gol de empate contra a Inglaterra, em Wembley. Fui escolhido o melhor em campo por toda a imprensa internacional. No jogo da Escócia, não fiz gol, mas, de novo, fui escolhido o melhor em campo por toda a imprensa europeia. Aí despertou o interesse do Newcastle, e depois que voltei desta excursão os contatos foram mais frequentes com o pessoal que estava tentando me negociar com o Newcastle. Fui vendido em meados de 1987 para o Newcastle, abrindo às portas do mercado inglês para o Brasil.
Você foi o primeiro jogador brasileiro a fazer um gol em Wembley, considerado um dos templos do futebol mundial, e o primeiro jogar brasileiro a jogar no futebol inglês. Como é que foi esta experiência? É verdade que, por conta disso, você teve um contato com a rainha da Inglaterra?
Tive a felicidade de quebrar esses dois tabus. Eu tive uma vez visitando o Palácio de Buckingham, com o time, e fui apresentado à Rainha e, também, tive a felicidade de jogar o torneio de 100 anos da Liga Inglesa, onde estava toda a família real presente e, mais uma vez, fui apresentado como o primeiro brasileiro a jogar na Inglaterra. O Newcastle era um time muito querido na Inglaterra.
Fizeram alguma referência em relação a isso? Ela sabia?
Sim. Parabenizou pelo feito de ter me tornado o primeiro brasileiro a jogar no Reino Unido; isso para mim foi legal, foi um momento de bastante satisfação pessoal.
No exterior, além da Inglaterra, você jogou em quais outros países?
Em Portugal, em 1991, no Belenense. Tive uma passagem rápida, dois jogos e três gols. Mas o Belenense não tinha como continuar me pagando e nem podia continuar assumindo o parcelamento que tinha com o Palmeiras na época, e eu voltei para o Corinthians. Estive no Japão por três temporadas. Fui para lá em 1992, depois do Corinthians; saí do Corinthians para o Japão. Ganhei o passe e fui para o time do Shimizu, do Japão; no ano seguinte joguei na Fugita, que era um time da segunda divisão. Fomos campeões e fui artilheiro da segunda e joguei mais uma temporada na Fugita, que virou Bellmare Hiratsuka. No final do meu segundo contrato voltei para o Brasil e encerrei minha carreira no Ferroviário.
E a experiência na Arábia como treinador?
Foi uma coisa inesperada. Jamais pensava que em seis meses, como treinador do Ferroviário em 1996, quando comecei, logo surgiria um convite, quase um coisa divina, porque é muito difícil entrar nesse mercado do mundo árabe. Mas eu acho que foi mais pelo meu currículo como jogador, porque quando o presidente do clube, príncipe Abdullah bin Abdul Aziz, viu minha carreira, essa coisa toda, ele se interessou, e com o aval do meu ilustre amigo Hamilton Barrero, que era treinador de um time lá, que foi quem me indicou. Logo no segundo ano eu fui campeão da 2ª divisão da Arábia, colocando o Al-Hajer pela primeira vez na 1ª divisão. Isso marcou a minha passagem por lá, tanto é que só nesse clube eu já fiz cinco temporadas. De vez em quando eu vou lá, dou uma passada e volto.
Você deu uma parada na carreira de treinador?
Dei um tempo. Mas pretendo voltar. Fui convidado pelo secretário Ferruccio Feitosa (Secretário Especial da Copa) para ajudá-lo nesse projeto e até a Copa do Mundo eu me comprometi a ficar por aqui na Arena.
Nesse período todo, deu para ganhar dinheiro?
Olha, na época que eu jogava a gente não ganhava dinheiro para fazer fortuna. Ganhava para viver bem, comprar um imóvel, aqui, ali. Na Inglaterra eu tive a felicidade de comprar alguns bens, alguns imóveis, mas como tive uma separação logo no início da carreira, e aí, depois, uma segunda, acaba que a gente vai deixando as coisas pelo meio do caminho. Mas uma das coisas que mais me deixa feliz, é que hoje eu tenho quatro filhos, todos bem encaminhados, casados, já me dando netos.
São quantos netos?
São quatro filhos dos dois primeiros casamentos e agora um quinto, do terceiro casamento, com a Viviane, que é a minha esposa atual, o Geovane, de sete anos. Os outros moram em Minas e São Paulo. Graças a Deus tenho uma família bacana, que a gente está sempre junto, e isso para mim é o que mais importa.
Dessa passagem pelo exterior você fala quantas línguas?
Três além da nossa. E aprendi na marra, por necessidade. Primeiro foi o inglês. Fui para a Inglaterra e não sabia falar uma palavra. Só dizia yes e not, mas acabei mergulhando de cabeça na cultura local. Deixei de lado as novelas, os pagodes, e aprendi muito. No segundo ano na Europa, apesar de ter saído da Inglaterra, tive a felicidade de ainda continuar exercitando um pouco o inglês, e depois fui para o Japão onde mergulhei de cabeça no japonês. Hoje, se não falo 100% de árabe, japonês, não passo fome se precisar ir por aí afora.
Mirandinha, se você não tivesse ido àquela noite para Campinas, o que acha que teria acontecido na sua vida?
Pensei muitas vezes nisso, e acho que poderia ter me tornado um jogador comum do futebol local, porque a gente costuma dizer que o cavalo passa selado apenas uma vez, e se você não montar nele perde a chance. O futebol é muito concorrido, e tenho certeza que a segunda oportunidade que a vida me deu, de ter voltado para o Ferroviário, e depois retornar para São Paulo foi uma coisa divina e eu só tenho que agradecer a Deus por tudo.
Você passa na sua fala para os visitantes do Castelão uma visão positiva em relação à vida, mas que conselho você daria para quem quer seguir a carreira de jogador no Ceará. Além de talento é preciso ter muita sorte?
Eu diria que é bem mais difícil ser jogador nos grandes centros. Aqui é bem mais fácil. E hoje, ser jogador de futebol é bem mais fácil. Antigamente você não tinha os recursos que tem hoje. Mas é preciso gostar e ser perseverante, porque se não desisti no primeiro obstáculo.
Fonte: O POVO