Cynara Menezes: O marco civil faz história e manda recado

Ao lado da presidenta Dilma Rousseff na abertura do evento NetMundial em São Paulo, Tim Berners-Lee, considerado o “pai da internet”, deu o tom da calorosa recepção internacional que se seguiria à aprovação do Marco Civil. “Estou pedindo que todos os países sigam o exemplo do Brasil e da Europa. É um exemplo fantástico de como o governo pode ter um papel positivo no desenvolvimento da rede”, disse.

Por Cynara Menezes*

Embora a imprensa brasileira tenha preferido destacar a decisão da ministra Rosa Weber, do STF, a favor da realização de uma CPI exclusiva da Petrobras, vários jornais do mundo trouxeram artigos sobre a aprovação de forma entusiástica, sobretudo na França, país coorganizador do evento. O jornal Le Monde trouxe reportagem de primeira página sob o título “O Brasil lidera a batalha contra a hegemonia norte-americana na web”.

O presidente da Associação Francesa para a Nomeação de Domínios de Internet em Cooperação (Afnic), Mattieu Weil, que estava em São Paulo para o evento, declarou-se otimista. “Nós não vamos fazer a revolução em dois dias, mas o Brasil está bem posicionado para fazer avançar a reforma da governança da internet. Está próximo aos princípios europeus, e, ao mesmo tempo, possui a confiança dos países menos desenvolvidos.”

A sanção também foi alvo dos elogios de Vinton Cerf, outro dos criadores da internet e atualmente vice-presidente do Google, como uma “iniciativa multipartidária que oferece importantes garantias para proteger a plataforma web e os direitos dos usuários”, e também de Nnenna Nuakanma, uma das criadoras da Fundação de Software Livre e Open Source para a África, que parabenizou os brasileiros.

O objetivo dos ativistas da rede é chegar a uma espécie de Constituição mundial da internet que possa garantir no futuro que endereços, nomes de domínios e protocolos não estejam mais, como hoje, sob a tutela dos EUA. Como disse a ministra francesa para as relações digitais, Axelle Lemaire, em São Paulo: “A web não deveria ser como o Velho Oeste, onde o que vale é a lei do mais forte”. Um disparo direto ao domínio norte-americano.

Vários especialistas apontaram que o Marco Civil brasileiro avança no sentido de mudar a governança da internet no mundo. “A neutralidade torna inadmissível qualquer restrição da rede por motivos comerciais ou de qualquer outra natureza”, disse Dilma Rousseff. Pela primeira vez, a presidenta foi ao Facebook responder ao vivo às dúvidas dos internautas em relação ao projeto, principalmente quanto à possibilidade de “censura” que vários setores quiseram associar ao projeto. Pelo contrário, disse Dilma, a lei “assegura a liberdade de expressão, a privacidade e o respeito aos direitos humanos”.

À frente do projeto como relator há três anos, o deputado Alessandro Molon (PT-SP) denunciou haver uma guerra de informação contra o projeto, que começou com a resistência das teles à neutralidade da rede e continua agora no campo da “guerra política”. “Ou é desinformação, desconhecimento sobre o projeto, ou é guerra política, para que a sociedade civil fique contra. Esta história de dizer que se pretende tolher a liberdade de expressão, por exemplo, é uma mentira sem tamanho. É um antídoto contra a censura, isso sim”, disse Molon.

O princípio da neutralidade, um dos itens centrais do Marco Civil e o mais combatido pelo lobby das teles, estabelece que a rede deve ser igual para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Ou seja, ao comprar um plano de internet o usuário paga somente pela velocidade contratada e não de acordo com o tipo de conteúdo (vídeos, e-mails, chats) que pretende acessar. No dia seguinte à sanção por Dilma, as operadoras de telefonia já estavam nos jornais dizendo que poderão vender serviços diferenciados, cobrando mais.

“Isso não se pode fazer, seria quebrar a neutralidade”, disse Molon. Embora o Marco Civil preveja que os provedores de conexão ficam proibidos de guardar os registros de acesso a aplicações da internet, houve polêmica sobre o artigo 15, alvo de pedido de veto à presidenta por ativistas. O artigo prevê que as empresas devem manter o registro do rastro digital do usuário por seis meses, o que foi visto como ameaça à privacidade.

Para Alessandro Molon, trata-se de falta de entendimento sobre a lei. “Sem essa guarda de dados seria impossível combater a impunidade. Foi um pedido da Polícia Federal e do Ministério Público, mas o que as pessoas não sabem é que os dados são sigilosos e só podem ser revelados sob ordem judicial”, disse o deputado, admitindo, porém, que a presidenta Dilma ainda pode fazer modificações no artigo na redação do decreto que regulamentará o Marco Civil.

A sessão do Senado que aprovou o projeto, na terça (22/4), esquentou, com bate-boca entre os senadores Aécio Neves, pré-candidato do PSDB à Presidência, e o petista Lindbergh Farias, que pretende se lançar ao governo do Rio. Aécio pediu um mês de prorrogação para análise e criticou a “pressa” do governo em sua aprovação. Lindbergh rebateu dizendo que os tucanos davam um “tiro no pé” ao querer atrasar a votação do projeto, que contava com mais de 350 mil assinaturas pedindo urgência. Começou uma troca de acusações sobre quem trabalha mais ou menos e a sessão precisou ser suspensa para acalmar os ânimos.

Após a aprovação, o clima no Palácio do Planalto era de franca comemoração, a despeito da decisão de Rosa Weber. Entre os assessores da presidenta, o Marco Civil já era considerado o “grande gol do ano”. Com uma vitória particular para Dilma, que, ao reforçar a investida contra o domínio norte-americano na internet, se viu vingada das denúncias de espionagem de seu governo feitas por Edward Snowden no ano passado.

“Esses fatos são inaceitáveis e continuam sendo inaceitáveis. Atentam contra a própria natureza da internet”, criticou a presidenta ao discursar na abertura do NetMundial. A africana Nnenna Nwakanma, que representava a sociedade civil no evento, fez questão de agradecer a Snowden na abertura. “Para todos nós que amamos a internet, e todos nós que estamos aqui, e a alguém chamado Edward, Edward Snowden, obrigado”, disse Nwakanma. Dilma sorriu e aplaudiu de pé.

*Cynara Menezes é jornalista e autora do site http://www.socialistamorena.com.br/