Atílio Boron: Imperialismo e o retorno da geopolítica
Uma olhada nas novidades editoriais produzidas no estudo das relações internacionais – ou, se quisermos usar uma linguagem “politicamente incorreta”, porém, mais clara e acessível: o imperialismo – revela a crescente presença de obras e autores que apelam à problemática geopolítica. A súbita irrupção dessa temática nos move a compartilhar uma breve reflexão, por duas razões.
Por Atílio Boron*, no Correio da Cidadania
Publicado 24/05/2014 10:20
Primeiro porque o assunto e a palavra há tempos tinham sido expulsos, aparentemente para sempre, do campo dos estudos internacionais e agora estão de volta. Propomos a hipótese, em segundo lugar, de que sua reincorporação não tem nada de casual ou acidental, mas é um sintoma de um fenômeno que transcende o plano da teoria e a semiologia: a decadência do império norte-americano.
Em relação ao primeiro, digamos que o abandono da perspectiva geopolítica não só se verificou nas elaborações dos mandarins da academia, o que não é motivo algum de preocupação, mas que também se fez sentir nas obras dos pensadores da esquerda, isto sim motivo de inquietude. Tanto era assim, e tanto mudou em tão pouco tempo, que ao terminar a edição do meu livro “América Latina na Geopolítica do Imperialismo”, em meados de 2012, e proceder à última revisão do texto antes de enviá-lo para impressão, pensei ser necessário introduzir um largo parágrafo, que reproduzirei parcialmente a seguir, para responder aos muitos amigos e camaradas que, sabedores da problemática que investigava, me fizeram conhecer sua surpresa, e em alguns casos desacordos, por dirigir minha atenção a um tema, a geopolítica, associada às colocações da direita mais reacionária e racista. Daí que senti a necessidade de dizer o seguinte, no início do livro:
“Umas palavras, precisamente, sobre a problemática geopolítica. Trata-se de uma questão que em geral a esquerda demorou mais do que o conveniente em estudar, por uma série de razões que não podemos senão apenas enunciar aqui: concentração no exame de temas ‘nacionais’; visão economicista do sistema internacional e do imperialismo; menosprezo da geopolítica pela gênese reacionária deste pensamento e pela utilização que dela fizeram as ditaduras militares latino-americanas dos anos 70 e 80 do século passado.
A generalização do conceito e as teorias da geopolítica se encontram na obra de um geógrafo e general alemão, Karl Ernst Haushofer, quem propôs uma visão fortemente determinista das relações entre os diferentes Estados para assegurar o que, em um conceito de sua autoria, qualificou como ‘espaço vital’ (Lebensraum). O desprestígio dessa teorização se relaciona com o fato de que foi esse conceito de Lebensraum o empregado por Hitler para justificar o expansionismo alemão, que culminou com a tragédia da Segunda Guerra Mundial. Hauschofer teve como fonte de inspiração a obra de um geógrafo e politico britânico, Halfor John Mackinder, que em 1904 havia escrito um muito influente artigo sobre ‘o pivô geográfico da história’” [1].
Em todo caso, o nascimento dessa perspectiva teve lugar em um momento histórico marcado pelo predomínio das concepções colonialistas, imperialistas e racistas, de finais do século 19 e começo do século 20. Se hoje reaparece, completamente ressignificada no pensamento contestador, é porque traz uma perspectiva imprescindível para elaborar uma visão crítica do capitalismo em uma fase como a atual, marcada pelo caráter já global desse modo de produção, sua febril depredação do meio ambiente e as práticas selvagens de despossessão territorial, padecidas pelos povos nas últimas décadas. Não deveria surpreender-nos, então, que dois dos principais pensadores do nosso tempo sejam geógrafos marxistas: David Harvey e Milton Santos.
É que a política e a luta de classes, tanto no nacional como no internacional, não se desenvolvem no plano das ideias ou da retórica, mas sobre bases territoriais, e o entrelaçamento entre território (com os “bens públicos ou comuns” que nos caracterizam), projetos imperialistas de exploração e despossessão e resistências populares ao despejo requerem inevitavelmente um tratamento onde a análise da geografia e o espaço se articulem com a consideração dos fatores econômicos, sociais, políticos e militares.
Em tempos como os atuais, nos quais a devastação capitalista do meio ambiente chegou a níveis desconhecidos na história, uma reflexão sistemática sobre a geopolítica do imperialismo é mais urgente e necessária do que nunca. Tal como recordara o comandante Fidel Castro em sua profética intervenção na Cúpula da Terra – Rio de Janeiro, junho de 1992 –, “uma importante espécie biológica está em risco de desaparecer pela rápida e progressiva liquidação de suas condições naturais de vida: o homem”.
Creio que as razões pelas quais, a partir da esquerda, temos de recuperar a problemática geopolítica – que estava presente, ainda que expressada com outra linguagem, no marxismo clássico! – são por demais convincentes. Mas, a que se deve o fato de a direita ter feito isso por conta própria e de a obra de intelectuais orgânicos do império (Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger, para nominar só dois de maior gravitação) e dos acadêmicos do mainstream norte-americano recorrerem a considerações geopolíticas em seus estudos e pesquisas cada vez com mais com frequência? Trata-se de uma superficial e efêmera moda intelectual, para substituir o já defunto conceito de “globalização”, cuja morte foi anunciada simultaneamente a seu advento, ou há algo mais?
Efetivamente, há algo mais. Não é um tema de modas intelectuais ou escolásticas, e esta é a segunda questão que queríamos colocar. A reflexão geopolítica no campo do pensamento imperial é filha de uma dolorosa (para alguns) comprovação: o império norte-americano superou seu zênite e começou a percorrer o caminho de seu lento e irreversível ocaso. Para os governantes e as classes dominantes dos Estados Unidos, trata-se, portanto, de tomar os cuidados necessários para evitar desenlaces inaceitáveis:
a) que o crepúsculo imperial precipite uma descontrolada reação anárquica em cadeia no sistema internacional, onde um bom número de Estados e uma quantidade desconhecida, mas significativa, de atores privados dispõem de um arsenal atômico capaz de eliminar na raiz toda forma de vida no planeta;
b) que, produto da irreversível redistribuição do poder mundial, a segurança nacional e o modo de vida dos Estados Unidos possam ver-se irremediavelmente minados.
Essa é a razão de fundo pela qual os estrategistas militares estadunidenses estão há mais de 10 anos se referindo obliquamente ao tema e alertando, em seus cenários bélicos prospectivos de longo prazo, que esse país deverá estar preparado para guerras, nos mais diversos rincões do planeta, durante os próximos 20 ou 30 anos. Doutrina da “guerra infinita”, cujo objetivo não será acrescentar sua primazia mundial mediante a incorporação de novas áreas de influência ou controle, mas apenas preservar as já existentes, ou evitar uma catastrófica derrubada dos parâmetros geopolíticos globais.
Esses prognósticos tardaram mais de 10 anos para se incorporarem às análises do mandarinato acadêmico e dos publicistas do império, profundamente enquistados nos grandes meios de comunicação. Porém, não mais. A teimosa realidade os obrigou a falar do que até há pouco tempo era impensável, quando uma camarilha de reacionários reunida no Projeto para o Novo Século Americano, fundado por Dick Cheney em 1997, se iludiu ao acreditar que o mundo que aparecia ante seus olhos após a queda do muro de Berlim e a implosão da União Soviética tinha chegado para ficar, para sempre, em uma típica reiteração da incapacidade do pensamento burguês para compreender a historicidade dos fenômenos sociais [2].
Foi uma ilusão infantil, assim julgou esse velho lobo do império que é Zbigniew Brzezinski, que a realidade frustrou em poucos anos. Os atentados de 11 de setembro derrubaram não só as Torres Gêmeas, mas também as ilusões tranquilizadoras com as quais se iludiam os “experts” do Projeto para o Novo Século Americano. Não é por acaso que, em seu mais recente livro, Brzezinski dedicou surpreendentes páginas introdutórias ao tema da declinante longevidade dos impérios, e, ainda que não o tenha dito explicitamente, está claro que, para ele, como para muitos outros, os Estados Unidos são um império [3].
Claro que se trataria de um império de novo tipo, movido pelo idealismo Wilsoniano, como assegura Henry Kissinger em seus diversos escritos, idealismo que o levaria, segundo esta visão autocomplacente, em um porta-estandarte das melhores causas da humanidade: democracia, direitos humanos, liberdade, pluralismo etc. Em uma palavra, o país a quem Deus confiou supostamente a realização de um "destino manifesto" e em virtude do qual se irradiariam os nobres valores e instituições ao redor do planeta.
Um argumento muito semelhante foi formulado por Henry Kissinger em um livro publicado em 1994 e traduzido para o castelhano no ano seguinte: "Diplomacia". Nele, o ex-secretário de Estado Richard Nixon advertia para a precariedade dos sistemas internacionais, observando que "a cada século diminui a duração dos sistemas internacionais. A ordem que surgiu a partir da Paz de Vestefália durou 150 anos … a do Congresso de Viena foi mantida por 100 anos … a Guerra Fria terminou, depois de 40 anos ", e conclui: "Nunca antes os componentes da ordem global, a sua capacidade de interagir e seus objetivos mudaram tão rapidamente ou tão profundamente quanto globalmente” [4].
Dado este contexto, não surpreende a nota que dias atrás publicou David Brooks no New York Times e que foi reproduzida em Buenos Aires pelo La Nación e, certamente, em outros diários da América Latina e Caribe. Brooks, um homem de clara persuasão conservadora, cita em sua nota a opinião de Charles Hill, um dos maiores peritos do Departamento do Estado, não mais no cargo, que disse textualmente: “A grande lição ensinada pela história da alta estratégia é que, quando um sistema internacional estabelecido entra em fase de deterioração, muitos líderes atuam com indolência e despreocupação, felicitando-se a si mesmos. Quando os lobos do mundo cheiram isso, supostamente começam a se mover para sondar as ambiguidades do sistema que envelhece e assim arrebatam as partes mais preciosas”.
Brooks reflete, desconfortavelmente, a literatura que cada vez com maior frequência examina o processo de declínio imperial, essa "fase de deterioração" à qual aludiu Hill, embora nem todos os autores se atrevam a abandonar os eufemismos tranquilizadores. A última edição da revista Foreign Affairs, órgão conservador do establishment diplomático dos EUA, apresenta um par de artigos de dois dos principais especialistas em análises das relações internacionais e que, para além de suas diferenças, concordam com o fato de que "a geopolítica está de volta". [5]
E, se está, é precisamente porque a correlação de forças que se cristalizou no plano internacional depois da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, as fantasias que anunciavam o advento de um "novo século americano" entraram em colapso.
Exemplos: Os Estados Unidos são derrotados irrecorrivelmente (29 a 3) em uma votação na OEA que pretendia decretar a intervenção desse organismo na crise que afeta a República Bolivariana da Venezuela; assistem impotentes à reincorporação da Criméia à Rússia, embora, em uma atitude incomum e provocativa, sua Secretária de Estado para Assuntos Euroasiáticos, Victoria Nuland, estivesse na Plaza Maidan em Kiev, distribuindo biscoitos e bolachas para gangues neonazistas, que então tomariam de assalto os edifícios governamentais e constituiriam um novo governo, rapidamente reconhecido pelas corruptas e decrépitas democracias capitalistas; e suas bravatas e ameaças contra a Síria ruíram como um castelo de cartas, enquanto a Rússia – e de maneira mais cautelosa, a China – fizeram saber a Washington que não ficariam de braços cruzados se a Casa Branca lançasse uma nova aventura militar no região.
Mudanças inesperadas, muito profundas e ocorridas em tempo muito curto, que nos obrigam a refletir sobre – e a atuar em – uma transição geopolítica mundial que dificilmente pode ser realizada de forma pacífica. Se olharmos para as lições da história, todas as transições geopolíticas anteriores foram violentas. Nada permite supor que hoje a história será mais benigna para os nossos contemporâneos, especialmente se reparada a desproporção fenomenal de recursos militares que são retidos pelo centro imperial, comparativamente a todos os outros países do planeta
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Notas:
(1) Mackinder ( 1861-1947 ) argumentou que o planeta é uma "Ilha Mundo ", que é onde a maior riqueza natural está concentrada e que é formado pela grande massa euroasiática e africana. No interior deste enorme espaço, recorta-se, de acordo com este autor, um território que se estende do Volga, a leste, até o rio Yangtze, na China, e do Himalaia ao Oceano Ártico e a Sibéria. Quem controla este território, sustenta Mackinder, controla a Ilha Mundial, e quem exerce esse controle pode estender-se a todo mundo. Tempos depois, o geopolítico americano Nicholas Spykman (1893-1943) reelaborou as concepções de Mackinder e destacou a importância das terras e mares do anel em torno do pivô central. Se o cerco for bem sucedido, diz Spykman, a potência vencedora dominará a Eurásia, e quem controla a Eurásia governará os destinos do mundo. Zbigniew Brzezinski é o maior seguidor desta tradição que atribui ao eixo central da massa eurasiana um papel crucial no domínio do planeta. A obsessão por cercar este território com todos os tipos de alianças político-militares alimentou a política externa dos Estados Unidos desde o triunfo da Revolução Russa, em 1917, até os dias atuais, como provam os mapas usados por Brzezinski em sua referida obra.
(2) Lembre-se que Cheney se tornaria, sob a presidência de George W. Bush, o vice-presidente dos Estados Unidos durante seus dois mandatos e um dos personagens mais influentes no processo decisório da Casa Branca, algo incomum, se se recorda o caráter eminentemente protocolar, quase cerimonial, dos vice-presidentes da república imperial americana
(3) Pode-se consultar essa questão da declinante longevidade dos impérios em Zbigniew Brzezinski, Strategic Vision.America and the Crisis of Global Power (New York: Basic Books, 2012), pp. 21-26.
(4) Henry Kissinger, La Diplomacia (México: Fondo de Cultura Económica, 1995), p. 803.
(5) Ver John Ikenberry, “The Illusion of Geopolitics. The Enduring Power of the Liberal Order” e Walter Russell Mead, “The Return of Geopolitics. The Revenge of the Revisionist Powers”, ambos en Foreign Affairs, Mayo-Junio de 2014.