Goulão e Hussain: Traçam-se as novas fronteiras do Oriente Médio

A Arábia Saudita reforçou em 30 mil homens o seu contingente militar nas zonas fronteiriças com o Iraque, confirmando-se que o governo de Riad não se considera a salvo da ofensiva que os fundamentalistas islâmicos do re-denominado Exército Islâmico (EI) desenvolvem na Síria e no Iraque.

Por José Goulão, de Bruxelas, e Charles Hussain, de Beirute para o Jornalistas sem Fronteiras

Estados Unidos Arábia Saudita - EPA / STR

Nos bastidores diplomáticos de Beirute, a capital libanesa, considera-se que a recolocação das tropas sauditas se enquadra na informação divulgada por Jornalistas Sem Fronteiras e segundo a qual os Estados Unidos e a Arábia Saudita travam uma guerra surda pelo controle da nova expressão do militarismo sunita, que evoluiu a partir do Exército Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), grupo terrorista criado clandestinamente pelos dois países.

“O Exército Islâmico mudou de nome e não é por acaso, nem por ter declarado um ‘califado’ nos territórios que controla no Iraque e na Síria”, afirma Ahmad Malouf, sociólogo libanês que tem se dedicado a investigar as novas relações sectárias e religiosas no Oriente Médio em função da desagregação dos Estados laicos e a emergência dos fundamentalismos políticos islâmicos.

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“Para o desenho do ‘novo Oriente Médio’, que é a nova tendência imperial deste século e tem os seus ideólogos nos Estados Unidos e em Israel, mas também na Europa Ocidental, por exemplo em França, havia falta de uma componente sunita organizada, depois do estado em que a ocupação militar e o desmantelamento do regime de Saddam Hussein deixou a comunidade no Iraque”.

“Acresce”, prossegue Ahmad Malouf, “que a envolvente sunita na Síria era igualmente uma babel, tantos foram os grupos formados pela coligação ocidental para derrubar Bashar al-Assad e desmantelar o país – e o Líbano, também. Até que de entre eles, depois de muitos milhares de mortos em combates ditos ‘fratricidas’, emergiu o Exército Islâmico do Iraque e do Levante, no qual os mentores e financiadores parecem ter apostado todas as fichas para a grande transformação regional”.

No entanto, sublinha Malouf, “estalou a desconfiança entre Riad e Washington sobre o controle e os objetivos deste grupo, que se tornou estratégico para o sunismo em termos de partilha sectária”.
O cenário descrito por Malouf deve ser lido em conjunto com as outras circunstâncias regionais da atualidade. O presidente do governo regional curdo do Iraque, Massud Barzani, declarou numa reunião fechada no parlamento, mas para todos saberem, que deve ser organizado um referendo para a independência do território. A declaração foi feita dias depois de os principais dirigentes israelenses terem dito em coro que “deve ser apoiada” a independência do Curdistão.

Em Bagdá, porém, o precário primeiro-ministro xiita Nouri al-Maliki afirma que a Constituição do Iraque não prevê referendos de secessão; porém, ele continua sem conseguir formar um governo: os seus principais aliados curdos “estão já com a cabeça na independência”, sublinha Malouf, e os grupos sunitas que o apoiavam no Parlamento iraquiano juntaram-se agora ao Exército Islâmico.

“Um Estado do Curdistão, um ‘califado’ sunita, uma entidade xiita, eis o que vai ser em breve aquilo que era o Iraque”, prevê Anthony Eliot, um veterano dos movimentos políticos, diplomáticos e da espionagem nos bastidores de Beirute.

“Formalmente”, prossegue, “os americanos ainda dizem que Maliki tem de constituir um governo de unidade em Bagdá, mas sabem que isso é impossível. O que resta do exército iraquiano, no qual Washington investiu bilhões de dólares, respondeu ao avanço sunita, mas apenas como quem pretende defender a sua própria zona de jurisdição, de fato xiita. Entretanto, desertou das fronteiras com a Jordânia, a Síria e a Arábia Saudita”.

Eliot lembra, a propósito, que o rei Abdallah da Arábia Saudita fez regressar ao ativo o príncipe Bandar Bin Sultan, seu chefe dos serviços secretos e chefe operacional do terrorismo islâmico sunita, apesar de há menos de um ano ter sido “despedido” por pressões dos Estados Unidos, feitas através do secretário de Estado John Kerry.

“Vê-se que Riad tomou providências desde o regresso de Sultan”, considera Anthony Eliot. “Reforçou os controles fronteiriços com o Iraque e tudo indica que as mudanças no Exército Islâmico não são apenas no nome. Elas serão a parte reivindicativa da Arábia Saudita neste processo de recomposição, de forma a garantir que o seu território continue intocável e a família real inamovível do trono. O rei terá informado Obama disso na conversa telefônica que dizem ter tido há poucas horas”.

Em suma, deduziu Anthony Eliot, “o Iraque já não existe, a pressão militar sobre Damasco tenderá a aumentar, o destino da atual Jordânia – e também do Líbano – estará interligado com o que os Estados Unidos e Israel, com a conivência do Egito de Al Sisi, farão à Palestina e aos palestinos – que têm cada vez menos poder reivindicativo. Não devemos perder de vista que o Hamas será sempre um braço potencial deste renascido bloco sunita agregado em torno do Exército Islâmico”, advertiu Eliot.

Fonte: Jornalistas sem Fronteiras