Ceci Juruá: Falácias em tempos de eleições, o Plano Real

O objetivo desse texto é demonstrar que o Plano Real tem sua especificidade histórica, mas não constitui uma camisa de força em matéria de política econômica e de políticas públicas.

Por Ceci Juruá*, na Carta Maior

O primeiro passo é observar que, sendo obra idealizada no governo de Itamar Franco e implantada no período seguinte, o Plano Real NÃO IMPEDE INFLAÇÃO. Esta é uma constatação empírica, pois:

– entre 1995 e 2002, as taxas de inflação variaram de 1,7% (1998) a 26,41% (2002); no período seguinte, 2003-2010, a variação se deu entre 1,22% (2005) e 12,14% (2004), e até houve deflação, – 1,4% no ano de 2009;

-usando-se o IGP-DI como indicador, a taxa média de inflação no governo FHC foi de 12,5% ao ano, enquanto no governo Lula foi de 6,46% anual,

-se, em lugar do IGP-DI utilizarmos o IGP-M, as médias foram 12,46% e 5,54%, respectivamente (dados retirados da Conjuntura Estatística da revista Conjuntura Econômica de junho de 2013).

Por outro lado é preciso admitir o fato sobejamente conhecido que o Plano Real foi o instrumento que liquidou a hiperinflação com que a economia brasileira se debatia desde os anos 1980. Esse foi seu grande mérito histórico. E o fez usando como principal instrumento de controle monetário a âncora cambial, sendo esta uma das razões pelas quais é difícil introduzir modificações na política macroeconômica sem correr o risco de descontrole monetário.

Em paralelo à adoção da âncora cambial, o Plano Real foi acompanhado por uma reforma do Estado orientada pelos paradigmas do Pensamento Único e do Consenso de Washington, transferindo ao setor privado, nacional e estrangeiro, parcela considerável do setor produtivo estatal, a preços irrisórios.

Por outro lado, aquela reforma fragmentou o poder de Estado mediante a organização de dois blocos: a) o Poder Executivo, onde atuam os ministérios com titulares escolhidos por negociação entre o Governo eleito e os partidos políticos representados no Congresso; e b) as agências de regulação, entidades que, em tese, poderiam ser resguardadas de influências políticas, porém sujeitas ao financiamento dos “regulados”, isto é, da clientela sobre a qual a regulação deveria exercer-se. Esta reforma não vem dando certo.

Sobre a inflação dos últimos anos, cuja taxa ainda não atingiu a média do período 1995-2002, muito se escreve e as opiniões são divergentes. Há a tese que ela ocorre principalmente no setor de serviços, porque se trata de produtos não comercializáveis, isto é, não sujeitos à concorrência de mercadorias importadas. Esta tese, que se apóia em dados empíricos, tem boa parcela de verdade. Outros autores atribuem ao neodesenvolvimentismo do governo Lula a persistência de taxas inflacionárias, embora sem reconhecer explicitamente as diferenças apontadas acima.

Na verdade o que diferenciou o governo Lula do anterior, em matéria de economia e políticas públicas, foi a tentativa de reequilibrar os dois pólos em que se pode dividir a demanda agregada : o interno e o externo. A partir do final de 2003, distinguem-se três orientações que impulsionaram o mercado interno: o Bolsa Família, a ampliação do crédito interno com destaque para o crédito consignado, e os reajustes do salário mínimo. Em seguida, ao final do primeiro governo foi anunciado o PAC-Plano de Aceleração do Crescimento, sucedido pouco depois por intervenções sucessivas do BNDES a fim de apoiar os investimentos produtivos na economia doméstica, mas também orientadas à internacionalização de grupos econômicos nacionais.

O sucesso desse conjunto de políticas pode ser evidenciado pela resistência da economia brasileira aos efeitos deletérios que a crise econômica de 2008-2009 produziu, gerando desemprego e empobrecimento em grande número de países, aí incluídos Estados Unidos e União Européia. A organização anunciada do banco dos BRICS está inserida na tentativa, bem sucedida, de liberar a economia nacional dos ônus impostos pela dependência às altas finanças mundiais. É mais um passo dos governos petistas no sentido de ampliar o exercício da soberania nacional.

É claro, ainda, que nos faltam estudos mais aprofundados e abrangentes sobre as fontes estruturais de persistência das tendências inflacionárias na economia brasileira. Estudos que permitam relacionar tais tendências com os desequilíbrios da balança de pagamentos e os efeitos decorrentes da desvalorização cambial. A desvalorização da taxa de câmbio é fonte de inflação, pois aumenta os custos dos componentes e produtos importados, logo repassados aos preços internos. Seu impacto depende do coeficiente de importação da economia nacional. Foi assim, por exemplo, nos anos de 1999 e 2002, e em anos recentes.

Se a desvalorização não provocou, nos anos recentes, taxas maiores de inflação, isto se deve a outro grande acerto do governo Lula: a formação de reservas internacionais que ampliaram o poder da ação do Banco Central relativamente às oscilações do câmbio. Sem esta medida, de extrema prudência e acerto, continuaríamos com o câmbio a reboque dos fluxos financeiros comandados pelas altas finanças mundiais. Deve-se portanto admitir que a formação de reservas brasileiras, em moeda internacional, constituiu também, um fator de apoio ao exercício da soberania nacional.

Sendo assim, é necessário admitir a fragilidade dos argumentos que sustentam a opinião de que há identidade de políticas nos governos do PT e do PSDB. Pelo contrário, foram absolutamente diferenciadas em matéria de centralidade da política econômica e de prioridade das políticas públicas.

*Ceci Juruá, economista, pesquisadora, doutora em políticas públicas, membro do Conselho Consultirvo da CNTU- Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitários. Rio de Janeiro, julho de 2014