Comissária da ONU analisa crimes de guerra e ocupação israelenses

Navi Pilay, alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, fez uma declaração abrangente sobre a situação na Palestina. O texto divulgado nesta quarta-feira (23) pela página oficial da ONU analisa as consequências da ocupação israelense e dos ataques contra lares e civis na Faixa de Gaza, além de outras ações que constituem crimes de guerra. O Conselho de Direitos Humanos, que inclui o Brasil, debaterá uma resolução ainda nesta quarta.

Por Moara Crivelente, da Redação do Vermelho

Faixa de Gaza - Mohammed Abed / AFP/ Getty Images

A declaração de Navi Pilay, intitulada “Situação dos Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados, inclusive Jerusalém Oriental”, se inicia mencionando as mais de 600 pessoas, inclusive 147 crianças e 74 mulheres, mortas pela atual ofensiva israelense, que já dura 16 dias. “Esta é a terceira grave escalada das hostilidades em meus seis anos como alta comissária. Como vimos nas últimas duas crises, em 2009 e 2012, são os civis inocentes da Faixa de Gaza, inclusive crianças, mulheres, idosos e pessoas com deficiências os que sofrem mais,” afirmou Navi.

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De acordo com estimativas da ONU, 74% dos palestinos mortos são civis e milhares ficaram feridos. “Esses números aumentaram drasticamente desde que a operação terrestre de Israel começou, em 17 de julho”, continua a comissária. Mais de 140 mil palestinos foram forçados a deixar suas casas e centenas de lares, escolas, hospitais e mesquitas foram destruídos ou gravemente danificados. De acordo com um porta-voz do Conselho de Direitos Humanos da ONU contatado pelo Vermelho, uma resolução sobre as denúncias deve ser discutida ainda nesta tarde pelos 47 membros do órgão, que inclui o Brasil.

Navi condenou o que classificou de “disparos indiscriminados” de foguetes pela resistência palestina contra e as mortes de dois civis israelenses, mencionando ainda as mortes de 27 soldados das tropas de Israel que invadiram Gaza há quase uma semana. Ela disse ser “inaceitável guardar equipamentos militares em áreas densamente habitadas ou lançar ataques desde essas áreas. Entretanto, a lei é clara: as ações de uma parte não absolvem a outra da necessidade de respeitar suas obrigações com o direito internacional.”

A comissária refere-se às constantes acusações das autoridades israelenses contra os grupos da resistência palestina, principalmente do partido à frente do governo de Gaza, o Hamas, de usar civis como “escudos humanos”, para justificar o elevado número de mortes entre eles, neste que é o território mais densamente habitado do mundo (são 1,7 milhão de pessoas em 360 quilômetros quadrados da faixa completamente sitiada).

Embora mantenha a perspectiva de que há “dois lados” em um “conflito”, o que tem sido amplamente questionado devido à assimetria das condições militares e à deslegitimação sistemática da “autodefesa” dos palestinos, por Israel e seus aliados, Navi condenou a estratégia israelense de buscar se eximir das responsabilidades pelo massacre, um dia depois de o secretário-geral da ONU Ban Ki-moon, em declaração conjunta com o premiê Benjamin Netanyahu, em Israel, ter pedido "às partes" o "fim das hostilidades" e afirmado o "direito de Israel de se defender."

Alvos e combatentes “legítimos”

“Lares civis não são alvos legítimos a menos que estejam sendo usados ou contribuindo para propósitos militares no momento em questão. Em caso de dúvida, lares civis não são alvos legítimos. Mesmo que uma casa seja identificada como usada para propósitos militares, qualquer ataque deve ser proporcional, garantir uma vantagem militar definitiva nas circunstâncias dominantes no momento e precauções devem ser tomadas,” continua. As autoridades israelenses já reagiram a estas afirmações nas ofensivas anteriores e são bem treinadas nesta prática, com o auxílio de consultores na área do direito internacional, empregados pelo Ministério da Defesa israelense, além de núcleos acadêmicos com “especialistas” dedicados a encontrar brechas no direito internacional humanitário, como ficou evidente e foi denunciado em 2009 por vários críticos.

Quando as reações às “advertências” internacionais foram formuladas, naquele ano (inclusive contra as conclusões da Missão das Nações Unidas de Averiguação dos Fatos, que divulgou um relatório de mais de 500 páginas afirmando que crimes de guerra tinham sido perpetrados), já se evidenciava a instrumentalização do próprio direito internacional humanitário pelas autoridades israelenses, com respostas específicas a cada uma das denúncias.

Para o caso das “precauções” a serem tomadas antes dos ataques às casas, por exemplo, a ênfase foi e é novamente posta sobre a “humanitária” prática do exército de lançar panfletos e enviar mensagens por rádio ou celular aos palestinos, ordenando que deixem seus lares prestes a serem bombardeados. Já sobre a proporcionalidade, a resposta resume-se à acusação das potências mundiais por “hipocrisia” devido aos seus próprios crimes de guerra contra outros países e povos.

Além disso, Navi menciona o princípio de distinção entre combatentes e não combatentes, o que abre outra pletora de argumentações assentadas na alegação de que os “militantes do Hamas” e da resistência em geral são “combatentes ilegais” e os civis vitimados prestam apoio às suas “ações terroristas”. São exemplos de que as acusações baseadas no direito internacional humanitário, histórica e amplamente desrespeitado com políticas “justificadas” através dos seus próprios termos, não serão eficazes enquanto não houver atitude, resultados e responsabilização. Até que isso aconteça, as mortes entre os civis continuarão sendo estatísticas permeadas por termos burocráticos.

Bloqueio, ocupação e repetição do massacre

Navi mencionou diversos casos de ataques contra infraestrutura civil (inclusive hospitais) que mataram centenas de palestinos nos últimos dias, além de condenar o próprio bloqueio imposto à Faixa de Gaza por Israel há sete anos, pedindo o seu fim.

“O atual conflito e destruição acontecem num momento em que Gaza ainda se recuperava das repetidas escaladas das hostilidades com Israel. Os efeitos debilitantes do bloqueio israelense e outras medidas ligadas à ocupação israelense sobre Gaza suprime a habilidade das pessoas de seguirem com suas vidas diárias e as impedem de reconstruir suas vidas e comunidades, após repetidas operações militares.”

“O desrespeito pelo direito internacional humanitário e pelo direito à vida ficou evidente de forma chocante, para todos verem, no aparente ataque contra sete crianças que brincavam na praia de Gaza, no dia 16 de julho,” lembrou Navi. “Respeito pelas vidas dos civis, inclusive das crianças, deveria ser prioridade. Não respeitar esses princípios pode culminar em crimes de guerra e crimes contra a humanidade.” São advertências a que Israel está acostumado e pelas quais as autoridades, por trás dos repetidos massacres, continuam impunes.

A comissária contextualizou também a atual ofensiva dentro de uma “ocupação prolongada”, reafirmando o estatuto de Israel enquanto “Potência Ocupante” dos territórios palestinos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, inclusive Jerusalém Oriental, com “insegurança e a luta constante e diária por direitos humanos, em particular o direito à autodeterminação”, mencionando, além do bloqueio a Gaza, a expansão das “colônias ilegais israelenses; a violência dos colonos [contra os residentes palestinos]; as demolições de lares palestinos; o muro e seu regime associado; o excessivo uso da força; as detenções em larga escala dos palestinos” como exemplos dos “abusos e violações contínuos e rotineiros dos direitos humanos cometidos contra uma população ocupada.”

A condenação, em geral, é um passo importante, necessário e urgente, mas deve finalmente resultar em medidas concretas que impeçam a repetição desses massacres resultantes das frequentes ofensivas israelenses contra os palestinos. Enquanto o mundo e, principalmente, os aliados de Israel não tomarem posições contundentes que detenham imediatamente esse ciclo, declarações como a da comissária continuarão sendo apenas burocráticas, ainda que preenchidas por denúncias contundentes e explícitas.