Nereide Saviani, uma pedagoga de concepção comunista

A doutora em História e Filosofia da Educação Nereide Saviani, que desde criança sonhava em ser professora, fala da sua trajetória, da sua relação com a Pedagogia Histórico—Crítica ( Pedagogia de concepção Marxista) e também com o seu irmão o pedagogo Dermeval Saviani. Nereide afirma que como toda instituição, a escola é um espaço contraditório, reflete a luta de classes que se dá na sociedade: a luta incessante dos trabalhadores contra a exploração e a opressão.

Nereide Saviani - Reprodução

Ela acredita que a melhor contraposição ao ensino de concepção capitalista é o desenvolvimento de um ensino que permita às classes trabalhadoras a apropriação dos múltiplos elementos culturais, produzidos socialmente e monopolizados pelas classes sociais que detêm os meios de produção.

Confira os principais trechos da entrevista de Alexandre Lucas:

Quem é Nereide Saviani?

Nereide Saviani: Brasileira, nascida em Amparo/SP, a 13 de novembro de 1947 (embora a certidão de nascimento registre 01 de dezembro). Nona filha de um casal de lavradores no interior de São Paulo, transferido para a capital em setembro de 1948. Professora Normalista. Pedagoga. Mestra em Supervisão e Currículo. Doutora em História e Filosofia da Educação. Diretora da Escola Nacional João Amazonas. Diretora de Formação da Fundação Maurício Grabois. Militante e dirigente do Partido Comunista do Brasil – PCdoB.

Fale da sua trajetória pedagógica.

Nereide Saviani: Desde criança, sonhava ser professora. No período de 1964 a 1966, fiz o Curso Normal – formação de professores (as) do então curso primário – no Colégio Nossa Senhora do Sagrado Coração, em Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, Capital. Fui alfabetizadora de crianças e jovens/adultos, em escolas públicas e no MEB – Movimento de Educação de Base (1967-1970). Fiz o Curso de Pedagogia na PUC-SP (1969-1972). Lecionei nas quatro primeiras séries do então Ensino de 1º Grau, na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP (1971-1975). Fui Supervisora de Cursos e Assessora Pedagógica no então Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização, depois EJA – Educação de Jovens e Adultos, na Prefeitura do Município de São Paulo (1975-1989). Fiz o Mestrado em Supervisão e Currículo na PUC-SP (1975-1981), com a defesa da Dissertação: Função Técnica e Função Política do Supervisor em Educação. E o Doutorado em História e Filosofia da Educação (1989-1993), com a defesa da Tese: Saber Escolar, Currículo e Didática – problemas da unidade conteúdo/método no ensino. Lecionei em cursos superiores da área da Educação (Pedagogia e Licenciaturas), assumindo disciplinas como: História da Educação Brasileira; Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º Graus; Didática e Prática Pedagógica; Currículo e Avaliação. Atuei como docente-pesquisadora e orientadora nos Programas de Pós-Graduação em Educação: História e Filosofia da Educação (depois denominado História, Política, Sociedade) – mestrado e doutorado, na PUC-SP (1994-2001); Mestrado em Educação, na Universidade Católica de Santos – Unisantos (2002-2009), quando me aposentei das atividades acadêmicas regulares. Desde 2003, atuo na direção da Fundação Maurício Grabois e dirijo a escola de formação teórica e política do PCdoB.

Você escreveu o livro Saber escolar, currículo e didática. Qual a importância desse estudo para a compreensão da escola no capitalismo?

Nereide Saviani: O livro foi publicado em 1994 e está na sexta edição (a 2ª edição é de 1998, a 3ª de 2000, a 4ª de 2003, a 5ª de 2006 e a atual, de 2010). Ele corresponde ao texto da tese de doutorado, com alterações para fins editoriais, atualizações em prefácios e algumas revisões. Nele, sistematizo obras sobre currículo e trabalho pedagógico que, de alguma forma, versam sobre a relação entre as disciplinas escolares e os saberes de referência (as ciências, por exemplo).

Defendo a tese de que é preciso organizar o currículo e os programas dos componentes curriculares de modo a aproximar os conteúdos do ensino aos conteúdos das diversas áreas do saber elaborado, partindo da concepção de currículo como seleção de elementos da cultura e sua seleção e organização para fins de ensino e aprendizagem em situações escolares. Constituindo-se numa espécie de “mapeamento” de enfoques que constam de produções sobre currículo e didática, o livro tem interessado a professores(as) que atuam na educação básica ou superior, a estudantes de graduação e pós-graduação, a pesquisadores(as) sobre formação docente e políticas educacionais.

Também é constantemente procurado por profissionais da educação que atuam com elaboração e implementação curriculares, assessoria a redes de ensino e programas de formação de educadores(as). Aliás, tenho recebido retornos de leitores(as), que me informam tê-lo trabalhado em diversas situações, das quais se destacam: programas de formação inicial e continuada de professores para o ensino básico e de especialistas em Educação; disciplinas de cursos de Graduação e Pós-graduação; grupos de estudo sobre questões pedagógicas; definição de referencial teórico para pesquisas em Iniciação Científica e em Mestrado/Doutorado em Educação. Em todos esses casos, a principal finalidade apontada é reunir enfoques sobre currículo e elaboração curricular e sua escolha é justificada por “ajudar a organizar ideias sobre o tema”, na medida em que sistematiza elementos constitutivos do saber escolar, fornecendo pistas para o exame de outras obras da área.

O que seria uma pedagogia de cunho socialista?

Nereide Saviani: A base da concepção socialista de educação é o materialismo histórico. Em Marx, os seres humanos se educam no e pelo trabalho, enquanto prática social consciente, na relação com a natureza e entre si, para a produção social da existência. A escola, construção histórica, é instrumento de educação, que deve contribuir para a formação integral do ser humano, permitindo-lhe o acesso aos múltiplos aspectos culturais, historicamente produzidos. Uma pedagogia de cunho socialista concebe o trabalho como princípio educativo e, aliados a ele: a apropriação crítica e criativa dos conhecimentos acumulados pela humanidade como imperativo para a emancipação dos trabalhadores; a escola como instrumento de educação da personalidade humana; o papel da educação escolar na formação multifacética das jovens gerações; a mesma educação para ambos os sexos; o trabalho como eixo central dos conteúdos e das atividades escolares, implicando a necessária relação entre ensino geral e politécnico. São suas principais premissas:

– a educação, no sentido amplo, como manifestação específica da ação social do ser humano e voltada para a formação da personalidade em seus múltiplos aspectos;

– a educação como fenômeno social historicamente determinado, compreendendo relações sociais e formas de comportamento social, imbuídos de caráter de classe;

– a educação como relacionada diretamente com a prática e com o conhecimento dessa prática e, portanto, necessariamente vinculada com o trabalho;

– a educação escolar como manifestação da educação no sentido amplo, constituindo-se numa esfera especial da atividade humana e tendo como campo principal o ensino;

– o caráter científico do ensino (processo consciente, deliberado, sistemático e metódico) e seu caráter de classe;

– a consideração, na organização do ensino, das transformações ocorridas na produção científica e técnica;

– a formação do pensamento científico como requisito fundamental para colocar as gerações atuais no nível de nossa época e a educação escolar como principal responsável por essa tarefa.

Qual a sua ligação com a pedagogia de Dermeval Saviani?

Nereide Saviani: Bem, a quem não sabe, informo que Dermeval e eu somos irmãos. Claro que isso não implica, necessariamente, afinidade de pensamento e de opção por área de estudo e de atuação. Como afirmei na resposta à segunda questão, meu interesse pela educação escolar acompanhou-me desde a infância, no desejo, realizado, de ser professora. Dermeval foi para o Seminário aos onze anos de idade (eu tinha sete), voltando ao convívio da família cerca de dez anos depois – quando eu já frequentava o Curso Normal. Desde então, nossa relação mais próxima foi decisiva na minha formação, não tanto em termos de posições sobre a educação, mas em termos de análise crítica da sociedade. Anos de 1960. Eu estudava num colégio religioso, em que as freiras interpretavam o golpe militar como movimento necessário para salvar o país do comunismo. Em casa, o pai – não muito religioso – reforçava essa ideia, enquanto os irmãos mais velhos a retrucavam (no discurso e na prática de metalúrgicos, sindicalistas), e tinham o apoio da mãe – católica praticante – haja contradição! Dermeval havia iniciado a Faculdade de Filosofia e, ao sair do Seminário, prosseguiu nesse estudo, já na PUC-SP, passando também a atuar no movimento estudantil. Nossas discussões me armavam para entender a contradição e enfrentar ou pelo menos descartar os argumentos pró-golpe e similares. Quando, já formada professora e exercendo o magistério, ingressei no curso de Pedagogia, na PUC-SP, ele já era professor de Filosofia da Educação e fui sua aluna. Com ele e com professores de outras disciplinas (como História da Educação, Sociologia Educacional e Psicologia Social), pude aprofundar minha visão crítica de sociedade, educação e escola. Tive contato com autores progressistas (Paulo Freire entre eles). O marxismo presente, mas de modo subjacente (por razões óbvias). De modo explícito, me foi apresentado em um grupo de estudo, reunido clandestinamente. Formada pedagoga, segui meu caminho com relativa independência, interessando-me particularmente por questões curriculares e didáticas, na condição de coordenadora pedagógica, cujos desafios concretos me chamavam a reflexões mais amplas e elaborações mais profundas – possibilitadas pela análise materialista histórica da educação escolar. Essa é a minha ligação coma a Pedagogia Histórico-Crítica.

Quais os principais desafios da educação brasileira?

Nereide Saviani: Em 2001 fui convidada a falar a estudantes de Pedagogia sobre os desafios da educaçãobrasileira para o século XXI. Comecei dizendo que o principal desafio era atingir os objetivos postos ao mundo desenvolvido para a educação no século XIX. O principal deles, a construção de um Sistema Nacional de Educação, necessário ao enfrentamento de outros, como: a erradicação do analfabetismo (hoje acrescido do enfrentamento ao analfabetismo funcional); a universalização do ensino elementar (no século XX, estendido para o ensino fundamental); ensino médio de sólida formação geral e técnico-científica (no Brasil, predominou o profissionalizante tipo adestramento); a criação de universidades públicas (no Brasil, o superior se expandiu quase que exclusivamente pela iniciativa privada); a formação de pesquisadores de alto nível (no Brasil, a pós-graduação se instaurou nos anos 1970 e carecia de maiores incentivos).

Com a eleição de Lula, em 2002, e de Dilma, em 2010, pode-se dizer que – considerando-se o atraso de séculos – muito se caminhou em direção a esses objetivos. Porém, há ainda muito a se conquistar. O Sistema Nacional de Educação voltou ao debate, tendo sido tema central das Conferências Nacionais de Educação (CONAEs), mas sua construção permanece um grande desafio para que os demais sejam enfrentados e superados. Acabamos de conseguir a aprovação de um Plano Nacional de Educação (PNE) avançado, que estabelece recursos para a educação na ordem de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional: uma luta que perdura desde as duas últimas décadas do século XX – e isso tende a elevar a um novo patamar a educação das jovens gerações, na perspectiva democrática da escola progressista. Outro grande desafio, portanto, é o estabelecimento de canais e mecanismos (com participação social) de fiscalização e controle da efetiva aplicação desses recursos a ações necessariamente educacionais e exclusivamente à escola pública.

A superação desses desafios é necessária para o atingimento de objetivos históricos:

– Garantia de educação de qualidade, pública, gratuita, obrigatória, universal e laica em todos os níveis: ampliação das oportunidades, aos trabalhadores, de ingresso (e permanência) em escolas básicas e universidades públicas; participação dos trabalhadores e suas organizações na gestão democrática das instituições educacionais e nos órgãos de decisão sobre a educação, em todas as esferas administrativas e em todos os níveis e ramos de ensino; erradicação do analfabetismo.

– ações de emergência junto a adolescentes, jovens e adultos que não tiveram acesso à escola ou dela se evadiram precocemente e compromisso com a manutenção e desenvolvimento de um ensino de qualidade às crianças; enfrentamento do analfabetismo funcional; ampliação do acesso aos níveis superiores de ensino.

– Reorganização dos currículos, atendendo às necessidades sociais e acompanhando o avanço técnico-científico contemporâneo – de modo a garantir uma formação profissional integrada a uma sólida formação geral, na relação entre a escola, o trabalho e as práticas sociais: condizente com a luta pela emancipação das mulheres, a luta antirracista e pela igualdade racial, o combate a toda manifestação de discriminação e preconceito, o respeito à livre orientação sexual, o atendimento às necessidades especiais.

– Valorização dos profissionais da educação: formação, plano de carreira, condições de trabalho; estabilidade das equipes escolares – com jornada e salário que permitam a permanência dos professores numa única escola.

– Regulamentação e fiscalização do ensino privado – normatização das relações trabalhistas e pedagógicas; combate à mercantilização e à especulação financeira.

No entanto, não se pode perder de vista o desafio maior, de instituir no país um novo ciclo de crescimento, em novas bases: recuperação do desenvolvimento, com distribuição de renda. Isto exige mudanças de base na sociedade e implica a realização de reformas estruturais (reforma política, dos meios de comunicação, do judiciário, tributária, agrária, urbana, da saúde, da segurança pública e, é claro, da educação). Tal desafio é parte essencial da construção de um novo projetonacional de desenvolvimento, com valorização do trabalho.

Por fim, não posso deixar de apontar desafios que considero cruciais para a luta sindical dos professores: continuar lutando pelas mudanças, com mobilização para a pressão no sentido de fazer valer as perspectivas mais avançadas; participação nas lutas imediatas, com visão de mais longo alcance (mudança estrutural da sociedade); união de forças e ampliação das pautas, para além das questões educacionais – tendo por eixo a redução da jornada de trabalho sem redução de salário – o que supõe articulação das organizações educacionais: com as organizações operárias e de outras categorias de trabalhadores; com partidos e outras entidades da sociedade civil.

Fonte: Blog das Entrevistas com Alexandre Lucas