Israel deslegitima o Hamas para continuar destruindo Gaza

Cientistas políticos expõem há muito quão destrutiva pode ser – e assim se evidencia – a insistência dos sucessivos governos de Israel em arbitrariamente deslegitimar o Hamas, no governo de Gaza, enquanto ator político. A retórica israelense pressupõe, em definitivo, que a resistência palestina consiste de “atividades terroristas” contra Israel, para justificar massacres como o atual, manter o cerco a Gaza e a ocupação da Palestina.

Por Moara Crivelente, da Redação do Vermelho

Presidente Mahmoud Abbas e Khaled Mashaal - Reuters

Antes da entrada em vigor de um “cessar-fogo” de três dias – o termo vem entre aspas porque se questiona a ideia de uma situação bidirecional, em que “duas partes” estão em “conflito”, como se houvesse alguma simetria de ações – o ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter (1977-1981), de tradição como analista e mediador de alguns "processos diplomáticos" até hoje inócuos, escreveu um artigo para a revista Foreign Policy indicando que uma mudança substancial neste ciclo infindável de massacres poderia começar pelo reconhecimento do Hamas enquanto ator político legítimo.

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O Movimento de Resistência Islâmica (“Hamas” é o acrônimo, em árabe) é designado como “organização terrorista” por Israel, pelos Estados Unidos, pelo Reino Unido, Canadá, União Europeia, pela Jordânia e, desde março deste ano, pelo vizinho Egito. Por isso, a Faixa de Gaza é completamente bloqueada desde 2007, quando o Hamas passou a governar o território, após as eleições parlamentares e um período de confrontos entre partidos e movimentos palestinos que resultou na ruptura interna com a Autoridade Palestina, órgão de autogoverno, no território palestino ocupado da Cisjordânia.

A designação também serve para classificar os integrantes da resistência palestina enquanto "combatentes ilegais", o que supostamente eximiria as forças israelenses das obrigações para com o direito internacional na condução dos seus ataques. Trata-se apenas de mais um recurso discursivo, nem tanto jurídico, que ainda serve para culpar os civis palestinos que votaram, que apoiam ou que dividem um bairro com membros do Hamas por sua própria morte.

Há quase oito anos 1,8 milhão de palestinos habitantes de Gaza passam por um processo acelerado de empobrecimento, no que até a Organização das Nações Unidas (ONU) passou a chamar de “punição coletiva”, com episódios reiterados de ofensivas como a atual que, em um mês de bombardeios por mar, terra e ar das forças israelenses, já matou quase 1.900 pessoas, majoritariamente civis e mais de 400 crianças, deixando o território mais uma vez devastado e a infraestrutura civil básica arrasada.

O último “cessar-fogo”, encerrado na manhã desta sexta-feira (8), não foi prolongado devido à recusa dos palestinos de renderem-se à ocupação israelense. A delegação enviada por Israel ao Cairo, Egito, para negociações indiretas com os palestinos – mediadas pelos egípcios – recusou-se a concordar com a demanda pelo fim do bloqueio a Gaza, entre outros pontos que reivindicavam uma mudança substancial da situação, e exigiu a “desmilitarização” do estreito território litorâneo sitiado. Opiniões favoráveis à reocupação presencial de Gaza também foram afirmadas por aturidades israelenses como, a certa altura, o chanceler Avigdor Lieberman.

O governo israelense insiste em manipular a recusa do Hamas em reconhecer o Estado de Israel, que mantém um regime de ocupação sobre a Palestina, para alegar uma intenção de "destruição" e de "eliminação" dos judeus, na tentativa de impor uma visão retrógrada de um "conflito religioso", recorrendo constantemente à retórica do antissemitismo. Em entrevista recente à emissora estadunidense CBS, entretanto, o secretário-geral do Hamas Khaled Meshaal resumiu sua posição afirmando: "Não lutamos contra os judeus, lutamos contra o ocupante".

Destruição e repetição

A Agência das Nações Unidas para Assistência e Trabalhos (UNRWA) para os refugiados palestinos informou, em um relatório de emergência divulgado nesta sexta, que seus abrigos receberam mais de 270 mil pessoas forçadas a deixar suas casas durante este mês de bombardeios. Ainda assim, as equipes de resgate continuam recuperando corpos dos escombros, e o número de mortos relatados chegou a 1.890 pessoas, com 47 corpos encontrados após o cessar-fogo. Seis das vítimas eram crianças e quatro, mulheres.

Enquanto os três dias sem bombardeios também permitiu aos palestinos coletar itens pessoais dos escombros dos mais de 10 mil lares destruídos e centenas de outras estruturas derrubadas, as autoridades locais estimaram perdas em mais de US$ 150 milhões (R$ 344 milhões) na indústria alimentícia – já extremamente debilitada, que abastecia mais de 70% das demandas locais e empregava mais de 120 mil pessoas – e mais de US$ 6 bilhões (R$ 13,7 bilhões) em prejuízos pela devastação da infraestrutura e das 10 mil casas, de acordo com o governo local (o Produto Interno Bruto anual de Gaza é US$ 2,9 bilhões, ou R$ 6,9 bilhões).

Mas a comunidade internacional, ainda condescendente com Israel, embora cada vez menos, diante dos seus flagrantes crimes de guerra, já garantiu aos palestinos uma “conferência de doadores” marcada para setembro, para a enésima reconstrução de Gaza. No Brasil, os movimentos sociais que têm se levantado com mais firmeza em solidariedade aos palestinos poderiam fazer as contas do que Israel destruiu das estruturas que os brasileiros ajudaram a construir.

Em ofensivas anteriores, a UNRWA informou que a destruição das suas estruturas, que, assim como na atual agressão, não escaparam dos bombardeios, ainda que sejam estruturas de serviço humanitário – outra violação do direito internacional por Israel – foi ressarcida pelo governo israelense, que paga para destruir e para mergulhar os palestinos ainda mais fundo na calamidade.

Impedir a reconciliação palestina

A atual ofensiva, “Margem Protetora” (ou “Penhasco Poderoso”, como é intitulada em hebraico), lançada em 8 de julho e intensificada quase 10 dias depois, com a invasão terrestre de Gaza, atingiu os palestinos, deliberadamente, para muitos, no momento em que a importante conquista da reconciliação nacional se consolidava. Antes, o governo de Israel já havia ameaçado retaliar pela própria reconciliação. Após alguns anos de negociações e percalços, o Hamas e os partidos e movimentos integrantes da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) concordaram com o estabelecimento de um governo de unidade que realizaria eleições, previstas para outubro.

Como em episódios anteriores, o governo israelense esforçou-se por sabotar as conversações palestinas, após sabotar mais um período de negociações entre Israel e a Autoridade Palestina lançado pelos Estados Unidos que, embora aliados fiéis dos sucessivos governos sionistas de Israel, se apresentavam novamente como “mediadores”. Mais uma vez, promoviam os interesses israelenses – e os próprios – de rendição dos palestinos, com a negligência gritante diante da expansão da ocupação israelense, único resultado da “diplomacia” estadunidense, sobre a Palestina.

Depois de a OLP depor as armas na resistência, e passar a reconhecer o Estado de Israel, em 1988, o Hamas foi transformado pelo discurso israelense na “ameaça terrorista” absoluta. Assim, os governos de Israel, ao longo de décadas, justificam as incursões tanto na Cisjordânia quanto em Gaza – de onde seus milhares de colonos e tropas foram retirados em 2005, majoritariamente transferidos para a Cisjordânia ocupada – e os massacres recorrentes, como o atual, com a certeza da impunidade assentada principalmente na aliança estadunidense, na negligência internacional e na propaganda midiática.