Violações: Israel rechaça relatório da ONU sobre devastação de Gaza

Enquanto a tragédia de Gaza desaparecia dos noticiários convencionais, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um relatório abrangente sobre a devastação do território bombardeado por Israel há mais de 50 dias. Para justificar seus vastos crimes de guerra e as mortes de 2.123 palestinos, majoritariamente civis, o Exército israelense voltou a criticar a ONU e a alegar que seus alvos são todos “terroristas”.

Por Moara Crivelente*, para o Vermelho

Gaza - OCHA

Como nas repetidas ofensivas anteriores, o governo israelense tem investido em culpar a liderança palestina de Gaza, sobretudo o Hamas, pelas mortes de tantos civis e de centenas de crianças. Embora um novo cessar-fogo mais abrangente esteja finalmente se desenhando nesta semana, a responsabilização da liderança pelos crimes de guerra perpetrados em quase dois meses de bombardeios é rebatida por Israel, que joga com princípios do direito internacional humanitário, através do aparato propagandístico e jurídico, e resume sua defesa alegando que o Hamas usa os civis palestinos como “escudos humanos”.

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Nesta segunda-feira (25), a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) também publicou mais um relatório sobre a situação no território de 365 quilômetros quadrados em que residem quase 1,8 milhão de palestinos e que está sitiado há quase oito anos, desde que o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), partido político que Israel desclassifica como “organização terrorista”, assumiu o governo após as eleições parlamentares de 2006. Cabe lembrar que diversas declarações de autoridades israelenses já foram divulgadas culpando os palestinos por “votar errado” e serem assim responsáveis pela agressão reiterada de que são vítimas.

No mesmo dia, dois ataques aéreos de caças F-16 israelenses atingiram um prédio de 13 andares na Cidade de Gaza. Mas o Exército de Israel, que se propagandeia enquanto o “Exército moral”, havia telefonado antes, ordenando aos civis que deixassem o edifício, minutos depois completamente destruído. Assad Saftawi, de 18 anos de idade, contou ao repórter Dan Cohen, em matéria para o portal Mondoweiss, que esta foi a segunda casa que a sua família perdeu em menos de dois meses. De acordo com o jornal israelense Haaretz, ao menos 10 pessoas, inclusive quatro crianças, ficaram feridas no ataque.

Morte de famílias inteiras

O documento da OLP, elaborado por seu Departamento de Assuntos das Negociações, ressalta que “Israel continua atacando famílias palestinas, enquanto aviões de combate bombardearam a casa da família Judeh, na Cidade de Gaza, matando cinco pessoas: Tasneem Judeh e seus filhos Rawya, Raghd, Usama e Mohammad.” Desde o início da chamada “operação Margem Protetora”, lançada oficialmente em 8 de julho – embora ataques aéreos já tivessem matado mais palestinos nas semanas anteriores – as forças israelenses já “dizimaram cerca de 90 famílias, matando ao menos 530 membros”, afirma o documento.

Ao menos 2.123 palestinos foram mortos nos 50 dias de bombardeios, com poucos dias de interrupção devido às tréguas esparsas, mediadas principalmente pelo Egito, mas encerradas devido à insistência de Israel em manter o estado das coisas, o que pode mudar nesta semana, de acordo com o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas.

O presidente anunciou um entendimento para negociações mais abrangentes com Israel que incluiriam o fim do cerco a Gaza, um dos territórios mais densamente povoados do mundo vivendo numa espiral de grave empobrecimento e frequentes crises humanitárias impostos pelo bloqueio completo e pelos frequentes bombardeios, a “punição coletiva” dos palestinos, segundo a ONU, e os verdadeiros experimentos de novos armamentos, segundo até mesmo soldados israelenses, em testemunhos divulgados pela organização nacional Breaking the Silence ("Quebrando o Silêncio").

Das vítimas fatais contabilizadas até segunda-feira (25), 577 eram crianças, 260 eram mulheres e 101, idosos. Além disso, 10.861 pessoas ficaram feridas. Os hospitais que ainda conseguem atender as vítimas estão abarrotados, faltam medicamentos e funcionários, uma situação que já se verifica há semanas. Muitos foram atingidos diretamente ou danificados por bombardeios a locais próximos. Clínicas de atendimento, escolas – inclusive da ONU e do governo – e locais religiosos – mesquitas, igrejas e até cemitérios –, quase 10 mil lares e a infraestrutura civil essencial – como a elétrica, de abastecimento de água e de saneamento – também foram destruídos.

Quase um terço da população do enclave palestino foi obrigado a se deslocar em busca de refúgio, ou seja, cerca de 600 mil pessoas, mas muitos dos abrigos que encontram, ainda que sejam assim informados às forças israelenses, não recebem a proteção exigida pelo direito internacional humanitário. Exemplos são ao menos três massacres em escolas da ONU – atingidas diversas vezes – que abrigavam três mil ou mais pessoas, cada uma.

Propaganda para rebater as evidências

A destruição do território está vastamente documentada no último relatório do Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês), divulgado na semana passada. Em mais de 100 páginas, o “Atlas da Crise em Gaza” define através de diversos mapas detalhados a extensão da devastação, inclusive da infraestrutura essencial e das estruturas humanitárias geridas pela Agência das Nações Unidas para Assistência e Trabalhos para palestinos (UNRWA), que gere mais de oito campos de refugiados – que são cerca de um milhão dos habitantes – apenas na Faixa de Gaza.

Ainda que as conclusões da Missão das Nações Unidas para Averiguação dos Fatos publicadas em setembro de 2009 – após outra grande ofensiva israelense, “Chumbo Fundido”, que matou cerca de 1.400 pessoas –incluíam a de não haver evidências que corroborassem as alegações já feitas por Israel, de que o Hamas usou civis como “escudos humanos”, a acusação se mantém, na ofensiva atual, a terceira em cinco anos, para justificar as mortes dos palestinos perante o direito internacional.

Em sua página oficial e nas redes sociais, o Exército israelense continua apresentando suas ações como "morais" e "justificadas" e já criticou o relatório do Ocha como um que teria omitido o posicionamento do Hamas nos locais atingidos pelos bombardeios, seja escondendo foguetes em residências, hospitais e escolas, ou lançando foguetes a partir destes locais. Assim, enquanto culpa a liderança palestina pelo massacre, o governo de Israel, liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, mantém a ofensiva sem data de encerramento, contando com apoio interno, a negligência internacional e o respaldo criminoso do principal aliado, os Estados Unidos, que alimentam o setor militar israelense anualmente e vetaram mais de 50 resoluções do Conselho de Segurança da ONU no sentido da condenação das agressões e da ocupação da Palestina.

É essa a estratégia, em traços gerais, da equipe jurídica do governo e do Exército israelense que, através da sua Advocacia Geral Militar, do Ministério da Defesa e da Chancelaria, já prepara há semanas a defesa contra as críticas internacionais, contando com a mídia tradicional como seu meio e sua máquina de propaganda, certa de que garantirá outra vez a impunidade dos líderes israelenses por trás de mais um episódio do genocídio dos palestinos.

*Moara Crivelente é cientista política e jornalista, fez parte da redação do Portal Vermelho e integra o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)