Juca Ferreira: Cultura brasileira, olhando para frente

A cultura é uma dimensão incontornável da nação, um componente central de qualquer estratégia sustentável de construção do país. E, por ser tão importante, deve ser tratada como um direito de todos os brasileiros.

Por Juca Ferreira*, no Le Mondi Diplomatique

(Foto: Hebert Kajiura/cc)

Juca Ferreira

O Brasil se consolida neste início do século 21 como uma das maiores democracias e uma das maiores economias do mundo, e como a única potência emergente no Ocidente. A emergência do Brasil tem muitas implicações e, a depender da nossa lucidez na condução política dessa evolução, pode significar muito para nosso futuro, para a América do Sul, para a África, para toda a América Latina e para todos os que falam português e espanhol.

A importância do país no mundo só tem feito crescer. Isso nos impõe o desafio de refletir e cuidar das muitas dimensões do desenvolvimento – não só dentro dos padrões tradicionais da geopolítica e da economia como se costuma pensar. O debate amplo e complexo sobre a centralidade da dimensão simbólica no processo de desenvolvimento tem uma importância decisiva neste momento da vida brasileira.

A cultura é uma dimensão importante da nação e deve ser considerada pelo Estado em sua amplitude e não como uma simples agenda setorial. Ela tem capilaridade e está integrada com praticamente todas as grandes agendas do desenvolvimento do país: com o projeto de desenvolvimento econômico, com a sustentabilidade, com a consolidação da democracia no país, com a agenda social, com a educação de qualidade etc.

Os governos anteriores ao do presidente Lula, profundamente marcados pelo pensamento neoliberal, não demonstraram compreender que, sem desenvolvimento cultural, o Brasil não será uma grande nação, capaz de enfrentar os desafios do século XXI. Também não assumiram que o Estado brasileiro tem responsabilidades nesse processo e que a questão simbólica deve ser considerada em sua plenitude, com suas múltiplas dimensões. Não se preocuparam em construir as políticas públicas no âmbito da cultura, e foram responsáveis por uma ação medíocre e marcada pela privatização do papel do Estado.

Nos anos FHC, o Ministério da Cultura foi ausente, sem expressão, e sem uma base conceitual clara. O principal slogan do MinC era “cultura é um bom negocio”, demonstrando não lidar com a complexidade, nem com a importância da cultura e com sua abrangência e, por isso, deixaram de fora aspectos relevantes da cultura para o futuro do pais: o desenvolvimento das artes, expressões identitárias, conhecimentos, memória, valores, economia cultural, desenvolvimento tecnológico e estético, moda, arquitetura, design etc.

Mas não é só a repercussão da cultura no desenvolvimento que a faz importante e algo central para o Brasil. A dimensão cultural é essencial para a qualificação das relações sociais e para reforçar a coesão social. E, também amplia as possibilidades de realização da condição humana de cada um dos brasileiros e viabiliza a construção de subjetividades complexas.

O empoderamento dos diversos agrupamentos humanos que compõem a sociedade brasileira também depende do acesso pleno à cultura. Ou seja, são muitas as suas interfaces e repercussões na sociedade. As jornadas de junho de 2013 e seu desenrolar até a Copa do Mundo reforçam a necessidade de considerarmos os muitos aspectos culturais para a qualificação das nossas relações sociais e para a consolidação e adensamento da democracia brasileira.

A cultura também é a base de um país criativo no enfrentamento dos desafios contemporâneos; para desenvolver e manejar as novas tecnologias, para qualificar a convivência e aprofundar a integração de todos os brasileiros em meio à diversidade cultural. A cultura é uma dimensão incontornável da nação, um componente central de qualquer estratégia sustentável de construção do país. E, por ser tão importante, deve ser tratada como um direito de todos os brasileiros. Os objetivos mais estratégicos da sociedade brasileira dependem, para sua realização, do reconhecimento da importância da cultura e das artes.

Política Cultural Democrática

Até o início do governo do Presidente Lula (2003) a cultura era relegada a um segundo plano. Apesar de existir desde 1985, o Ministério da Cultura era irrelevante, desconhecido, sem políticas, sem recursos, chegando a ser extinto em 1989 e recriado anos depois. Até então, o MinC não via o desenvolvimento cultural do país como sua principal meta, nem tinha relação com os aspectos mais importantes e decisivos da nossa vida cultural. Em torno de 80% dos recursos para o fomento e o incentivo às artes e à cultura em geral eram viabilizados através da renúncia fiscal, e quem definia os usos desse dinheiro público eram os departamentos de marketing das empresas privadas. O Estado havia transferido seu papel para o mercado.

O governo Lula assumiu a importância da cultura para o país e procurou se relacionar com a sua complexidade através de uma ação coerente, sem negligenciar nem esquartejar o caráter multifacetado e policêntrico da dimensão simbólica. Diversidade, cultura e desenvolvimento, direitos culturais, memória, infraestrutura cultural, promoção, economia da cultura; uma infinidade de temas veio à tona, dando idéia da grandeza e da profundidade desse processo de construção de uma política de Estado para a cultura.

Através de políticas públicas, programas e ações inovadoras, o Ministério da Cultura redefiniu sua missão, e foi integrado ao discurso e a algumas políticas mais centrais do governo; passou a ser um referencial para o desenvolvimento social e econômico do Brasil. O orçamento do Ministério da Cultura da gestão Gil/Juca cresceu 600% em oito anos, aumentado sempre de ano para ano.

O MinC passou a discutir política cultural com todos os segmentos culturais e com a sociedade em geral. Passou a construir as políticas fora dos gabinetes, realizando mudanças de forma participativa e por meio de consultas públicas. A sociedade passou a influir no planejamento das políticas e, assim, a cultura foi integrada na agenda política e na plataforma dos direitos de cidadania. A cultura ganhou enorme espaço nos debates públicos e com isso começou a ser vista como direito de todos, tanto no que diz respeito à expressão, quanto ao acesso.

Neste contexto, o MinC passou a fazer parte da agenda do desenvolvimento do país em seu estrito senso e da agenda social do governo. Esta valorização da cultura repercutiu, e ainda repercute, muito positivamente não só no Brasil, mas também no exterior. Chamamos a atenção do mundo ao incluirmos milhões de brasileiros e a cultura no projeto de nação no governo Lula. O Ano do Brasil na França, a Feira de Frankfurt, a Copa da Cultura na África do Sul, entre tantos outros pontos de articulação, fizeram da cultura brasileira parte da sua agenda internacional, ativo do Brasil que fortalece nossos vínculos de amizade e fraternidade e desperta a admiração do mundo.

O Brasil passou a afirmar a diversidade cultural como um patrimônio do país. Destaca-se a criação de uma das políticas públicas mais inovadoras: o programa Cultura Viva, alcançando mais de 5000 Pontos de Cultura no Brasil por meio de editais públicos. Programa este que foi adotado por Argentina, Peru, Bolívia e outros países. Pela sua capacidade de reconhecer e apoiar diretamente as iniciativas de cada comunidade, o Cultura Viva ativou e fortaleceu grupos culturais nas periferias urbanas, na zona rural, em favelas, em movimentos sociais e quilombolas, chegando fortemente até as aldeias indígenas.

A política cultural foi elevada ao patamar de Política de Estado. O Governo Lula sancionou em 2010 a lei que estabelece o Plano Nacional de Cultura, o primeiro desde a redemocratização, com metas para 10 anos. O Plano transformou em lei muitas dessas conquistas, como, por exemplo, o apoio a editais que premiaram a produção cultural dos indígenas em centenas de aldeias.

O Ministério criou ainda o Vale Cultura, enviado por Lula e sancionado por Dilma (que já atinge 200 mil pessoas e deverá chegar a um milhão em breve), buscando modificar os números de exclusão cultural (em média de 80 a 90% dos brasileiros não freqüentam cinemas, livrarias e museus, segundo o IBGE).

No campo do cinema e do audiovisual, o MinC criou a lei 12.485, que revolucionou o antes tímido mercado de TV por assinatura, ampliando o acesso de 5 para 20 milhões de famílias no Brasil. E criou uma demanda de mais 5000 horas de conteúdo brasileiro e independente, gerando empregos para milhares de roteiristas, diretores de cinema, produtores e técnicos brasileiros. A nova lei injetou mais de um bilhão de reais no Fundo Nacional de Cultura, com recursos oriundos do próprio mercado.

O Ministério da Cultura foi inovador também no conteúdo e na forma de fazer política. Afirmou sistematicamente que não acreditava em políticas públicas construídas dentro de gabinetes de repartições públicas e mobilizou a maior rede de participação para a construção de uma poderosa política cultural de Estado. Mais de 200 mil pessoas de todos os cantos do Brasil participaram da construção das políticas e dos programas culturais. Foi pioneiro ao realizar as primeiras consultas públicas digitais sobre projetos de lei do governo federal.

Dispondo de ferramentas inovadoras de debate, a nova lei de incentivo à cultura, o marco civil da internet e a lei do direito autoral entraram no debate do país, e conseguiram ampliar o apoio para legitimar as mudanças. O Ministério da Cultura foi decisivo ao afirmar a agenda da cultura digital, conectando-se com os coletivos jovens, apoiando as redes que produzem e pensam cultura na internet e apoiando e digitalizando a produção cultural e as artes para torná-las acessíveis a todos: a Cinemateca Brasileira, a Brasiliana USP, o Cais do Sertão no Recife, a Bienal de São Paulo, instituições que o Minc apoiou, criou, ou ajudou a renovar.

Em suma, a cultura foi alçada a um patamar nunca antes alcançado, como reconheceram à época centenas de artistas, produtores, realizadores e usuários do sistema de cultura. Nestes 12 anos de Política Cultural, os saltos foram imensos. A cultura entrou no Fundo Social do Pré-Sal, foram realizados mais de 150 editais públicos, que mobilizaram centenas de milhares de indivíduos, grupos e coletivos.

Mas é preciso reconhecer que esse processo aconteceu não sem percalços. Entre 2011 e 2012 deixou-se de lado a política de Estado que consolidava a cultura como parte central do projeto de desenvolvimento do país e como direito de todos os cidadãos. Porém, a partir de 2013, foram obtidas vitórias institucionais no Congresso Nacional que consolidaram alguns dos programas e propostas elaborados desde 2003. Outros processos, contudo, não recuperaram as características reformadoras que tinham quando de sua elaboração original. As continuidades não conseguiram superar os efeitos negativos das rupturas, e como conseqüência, o Ministério da Cultura não conseguiu voltar a ocupar o lugar e ter o significado que já havia alcançado em 2010.

De volta para o futuro

Para retomar a grandeza das políticas de cultura do Estado brasileiro e sua dimensão ampla e transformadora, garantidora de direitos culturais, o Brasil tem dois desafios.

O primeiro é reeleger Dilma Rousseff. A história brasileira das três últimas décadas e o atual debate eleitoral evidenciam que só a aliança que se reúne em torno de Dilma carrega a concepção democratizadora do Estado e representa o projeto político que pode vir a reincorporar a cultura no centro de uma agenda ampla de desenvolvimento e de construção dos direitos de cidadania no país. Com a reeleição de Dilma, esta política transformadora poderá ser aprofundada e ampliada, e ganhar novos contornos.

O segundo desafio é construir, desde já, como parte da disputa eleitoral, um pacto que una amplos setores da cultura brasileira, de norte a sul, de forma equilibrada e sustentável, articulado em torno do projeto de desenvolvimento de todas as linguagens artísticas e de ampliação da produção, da distribuição e do acesso pleno à cultura no país. Este debate tem como objetivo construir um compromisso público e apontar novos caminhos para a retomada e desenvolvimento dessa política cultural para o segundo governo da presidente Dilma. Este objetivo só pode ser alcançado se o debate for feito como um processo político agregador, para que seja capaz de superar o desânimo. E, para isso, esse processo deverá se desenvolver com a grandeza e a amplitude necessárias.

O momento exige atualização da visão e da agenda para o futuro. O crescimento econômico trouxe novos desafios e novas demandas culturais e possibilita novas identidades impulsionadas pela integração de milhões de brasileiros na classe trabalhadora. A diversidade cultural brasileira está vicejando nos quatro cantos do país, com novas linguagens, novas sínteses e mesclas, navegando sobre as formas tradicionais ou com o suporte de novas tecnologias. A economia integra o território nacional, mas, se isso não for percebido culturalmente, seu efeito pode ser negativo e até desagregador.

Em síntese, precisamos consolidar a lógica democrática que norteou durante os últimos doze anos a ação pública na cultura: criar, fazer e definir obras, temas e estilos são papéis dos artistas e dos que produzem cultura. Escolher o que ver, ouvir e sentir, é papel do cidadão. Criar condições de acesso, produção, difusão, preservação e livre circulação, regular as economias da cultura para evitar monopólios, exclusões e ações predatórias, democratizar o acesso aos bens e serviços culturais; isso é papel do Estado.

*Juca Ferreira, sociólogo, é secretário licenciado de cultura do município de São Paulo e coordena o programa de cultura da candidata Dilma Rousseff (PT). Foi Secretário Executivo (2003-2008) e Ministro da Cultura (2008-2010), no governo Lula.