Eleições 2014: possibilidades renovadas, perspectivas preocupantes

O resultado eleitoral denota alguns aspectos interessantes. Se aplicarmos corretamente a conceituação marxista ao conjunto caótico de números podemos fazer constatações e avançar algumas conclusões. Destacamos as seguintes constatações:

Por Daniel Vieira Sebastiani*

Foto: Agência Brasil

1) A vitória da Dilma nos principais espaços socioeconômicos brasileiros, excetuando São Paulo e Paraná, focos da hegemonia burguesa, reforçada pela eleição de governadores de esquerda ou centro-dilmistas na maioria destes estados, com destaque para o Nordeste e parte do Sudeste, denota um estágio de consciência popular de que há mudanças positivas que têm como símbolo o Lula-Dilma; parece clara uma compreensão popular de que Dilma representa os seus interesses e o PSDB “os ricos”;

2) No entanto, o nível de consciência de classe termina por aí; a representação no Senado e na Câmara, mais conservadores que as anteriores, deixam claro que não avançou o processo de consciência de classe senão muito timidamente; os partidos efetivamente de esquerda, por exemplo, (PCdoB, PT, PSOL), têm menos de 1/5 dos deputados (!!!).

Portanto, forçoso é reconhecer que, desde a primeira vitória de Lula e sua reeleição, não houve avanço na consciência do proletariado e do povo brasileiro, amplíssima maioria do nosso eleitorado, desconsiderando os conceitos não marxistas de classe “c” e de “nova classe média”.

Se é verdade, como já afirmara Lênin, por óbvio, mas com um sentido filosófico mais geral, que a consciência das classes não se desenvolve em cursos, mas pelos fatos históricos que elas vivenciam, conclui-se que, politicamente, a esquerda foi incapaz de provocar fatos históricos que permitissem uma ampliação de consciência da classe proletária e das massas populares em geral. A consciência continua tímida, vaga e confusa; ancorada em ganhos momentâneos e diminutos, importantes é verdade, mas vinculados à figura do (da) líder, sem nenhuma noção de projetos.

A burguesia e camadas médias, no entanto, têm essa noção e se dividem entre o neoliberalismo e o reformismo de caráter social democrata, ao sabor dos interesses pessoais e coorporativos, dos estados e tradições históricas regionais; sobrando, residualmente, apoio ao setor revolucionário, consequente ou esquerdista. Mas, pela base conceitual marxista, não é dessas classes ou camadas, que surge um processo de transformação mais profunda; que dirá o socialismo. À guisa de exemplo, com vistas a sanar deficiências de compreensão deste conceitual, as experiências bolivarianas como Venezuela, Bolívia, Equador ou Cuba socialista não foram construídas senão pelo proletariado ou campesinato e contra as outras classes ou camadas, inclusive as médias.

No entanto, um analista marxista deve ressaltar o fato de que estes resultados institucionais, ao retratarem o momento atual, são apenas uma frente da luta de classes: as jornadas de junho de 2013, apesar de seu caráter híbrido mudancista-retrógrado, mostraram que a mobilização de massas leva um Congresso a aprovar qualquer coisa, dependendo da pressão.

A dificuldade reside nas limitações ideológicas e na institucionalização crescente da maioria da esquerda brasileira, o que lhe tolhe a capacidade de “apelo às massas” e de avanço na pauta política, independentemente do nível de radicalização programática dos seus integrantes.

É certo que a institucionalidade é hoje o maior instrumento de criação de pautas políticas, mas, como sempre foi, é o movimento de massas a maior expressão da luta de classes e o impulsionador, portanto, da institucionalidade.

Ao se render às lógicas eleitorais nas alianças e candidaturas e dedicar a maioria de seus melhores quadros, a maior parte de seu tempo de análise e ação política e de seus recursos em geral à institucionalidade, a esquerda abandona o motor para se render a exuberância da carroceria e, com isso, o carro, que continua vistoso, perde em potência… e se encaminha para perder a corrida histórica.

A vitória de Dilma pode ser uma oportunidade de revisar essas políticas e estratégias da esquerda que, independentemente da vitória de Lula em 2018, não abandona a essência do dilema político acima colocado e seu inevitável desenlace na derrota.

Uma análise marxista (sem contrabandos conceituais)

O conceito de classe média e classe “c” desenvolvido por setores da mídia, do Governo Federal, da academia e empresas de propaganda empresarial é um dos contrabandos conceituais a combater.

Na teoria de análise correta para avaliar a sociedade, ou seja, o marxismo, classe se refere aos dois pólos básicos da produção da mais-valia, essência do modo capitalista de produção, a saber: a burguesia e o proletariado. As demais são camadas. As camadas médias não foram estudadas a fundo por Marx que, no entanto, teceu análises sobre a pequena-burguesia da época e seus comportamentos políticos, bem como sobre o campesinato. Já Lênin aprofundou mais a definição estabelecendo que seja possível individualizar uma camada na sociedade contemporânea, para além das classes fundamentais, pela posição que o indivíduo ocupa na produção e a parte da mais-valia distribuída que este recebe.

Ora, salta aos olhos que a chamada “nova camada média” (que segundo os que a definem, teria renda oscilando entre R$ 1.500,00 e R$ 2.000,00 familiares em 2014, seria na sua imensa maioria assalariada), certamente não ocupa a posição de camada média: primeiro em função da sua renda, incompatível com uma vida confortável nos padrões da camada intermediária atual (carro novo, saúde privada, educação privada, férias com conforto, etc.), o que uma renda de R$ 5.000,00 familiares (2014) apenas garante e, segundo, em função da posição que ocupa na produção que é de trabalhador assalariado sem cargo público ou função de chefia na imensa maioria dos casos. Portanto, não recebe uma parte significativa da riqueza produzida e não ocupa função privilegiada ou de destaque na atividade que exerce.

Ocorre que a dita “classe c” não é senão parte do proletariado, em sua imensa maioria, cuja melhora de padrão decorre das políticas públicas, sociais e econômicas, implantadas no período Lula-Dilma.

A esquerda comprou, pela sua fragilidade política e ideológica, fruto das suas limitações atuais, esta inverdade e, ao fazê-lo, reforçou ideologicamente a identidade entre estes setores dos trabalhadores/proletariado, em tese favorecidos pelas suas políticas, e o setor das camadas médias, hostis e portadores de uma noção de “êxito pessoal” e superioridade sobre “a massa do povo”.

Com isto, deixou-se a parcela dos trabalhadores que mais renda auferiu à mercê das ideias de que este fato é fruto do desempenho pessoal e de que não mais pertencia “ao povo” e, portanto, não mais devia se identificar com as suas representações políticas. Fato este presente em estados como São Paulo ou Paraná, onde é mais forte a ideologia da tradicional camada média brasileira.

São Paulo votou majoritariamente em Aécio

Há uma grande safadeza teórica ao se estabelecer que São Paulo é o estado que mais riqueza e maior e melhor proletariado possui no País.

Sem dúvida São Paulo é a sede da classe dominante brasileira desde o final do século XIX (grandes fazendeiros produtores de café), até hoje, (sede dos banqueiros, maiores monopólios industriais, financeiros, de comunicação e de serviço) e, portanto, onde maior hegemonia detém a ideologia dominante. Reforçada por uma camada média alta aquinhoada e imbuída dessa mesma ideologia. Não por acaso foi um dos pilares da República Velha, a base da contrarrevolução conservadora de 1932 e uma das bases do ademarismo conservador e, sobretudo, da UDN golpista.

Mas há um elemento menos visível e que desmonta a ideia conservadora do “Brasil que produz”.

São Paulo possui as maiores e mais avançadas empresas do Brasil e ali estão as suas sedes. O fato de ali estarem as suas sedes concentra, por si, uma enormidade de recursos que chegam da exploração da riqueza e do trabalho realizado no Brasil todo.

Há uma enorme transferência pelas trocas desiguais no mercado, de mais-valia ou riqueza gerada no Brasil todo para São Pulo. Afora outros mecanismos de mercado, como os juros cobrados pela banca paulista de todo o Brasil.

Isto deixa claro o quanto é falaciosa a tese do Brasil (produtivo) que votou Aécio e o Brasil fraco economicamente e dependente do Bolsa Família que votou Dilma. Aliás, essa é a razão pela qual nenhum setor empresarial ou dominante dá a mínima atenção à histeria da internet quanto ao separatismo do sul do resto do Brasil.

Forçoso reconhecer que a massa proletária paulista, para além da hegemonia cultural imposta pelo peso da classe dominante com sede em São Paulo, usufrui de certo benefício no tratamento salarial, fruto do exposto acima, que a aproxima, objetivamente, nos seus valores da camada média tradicional e onde o discurso da “nova classe média” pode ter feito o seu maior estrago.

*Daniel Vieira Sebastiani é professor de História e militante do PCdoB no Rio Grande do Sul.