Uma babel de línguas

No século 16, quando os europeus realizaram as primeiras viagens exploratórias pelo Rio Amazonas, encontraram uma diversidade tão grande de línguas faladas na região que o padre Antônio Vieira, jesuíta residente no Pará em meados do século 17, denominou o Amazonas de “Rio Babel”.

Por José Ribamar Bessa Freire*, na Carta Fundamental

Tupi Guarani - Edson Sato/Agência Pulsar

O linguista tcheco Cestmir Loukotka (1968) comprovou essa diversidade com documentos históricos que encontrou nos arquivos da Europa e da América. Segundo ele, no momento do contato com o europeu, não havia um só falante de português no território que constitui a atual Amazônia brasileira, onde eram faladas mais de 700 línguas indígenas. Algumas dessas línguas eram aparentadas, pertenciam à mesma família ou ao mesmo tronco linguístico, o que permitia obter um grau mínimo de comunicação entre seus falantes, semelhante ao que ocorre quando alguém fala espanhol com um brasileiro, que pode entender muita coisa por se tratar de duas línguas, embora diferentes, provenientes do mesmo tronco, o latim. Muitas línguas, porém, pertenciam a troncos diferentes, o que bloqueava totalmente a comunicação, assim como ocorre quando alguém fala alemão com um brasileiro.

Alguns missionários consideraram que essa diversidade linguística era “obra do Satanás”, porque impedia a propagação do Evangelho. Na realidade, a falta de uma língua comum atrapalhava, sobretudo, o funcionamento da economia colonial, porque os colonos portugueses que exploravam a mão de obra indígena na coleta das chamadas “drogas do sertão” precisavam de uma língua comum, que fosse compartilhada com os índios. Sem ela, os colonos não podiam mandar nem os índios obedecer.

A língua que acabou sendo escolhida para essa tarefa foi o tupinambá, do tronco tupi, falada na costa do Salgado. Os jesuítas estudaram a fala dos índios, descobriram as regras que seguiam e descreveram a gramática dela, difundindo-a entre outras etnias. Ela foi transformada, assim, na língua dos catecismos, das orações, dos sermões, dos cantos, da catequese e do trabalho. Subiu os rios Amazonas e Solimões, penetrou nos seus afluentes e se expandiu por toda a região, sendo a língua majoritária até metade do século 19, usada por portugueses, índios, negros e mestiços. No processo histórico de sua constituição e expansão, essa língua passou a ser conhecida no período colonial como Língua Geral, recebendo depois a denominação de Nheengatu pela qual é conhecida atualmente ou Língua Geral Amazônica (LGA).

Na avaliação do padre Jacinto de Carvalho, visitador-geral das missões do extremo-Norte, essa Língua Geral tornou-se de uso tão amplo que os próprios portugueses, “que vão do reino, aprendem a falar a língua dos Índios”. Seus filhos, nascidos no Pará e criados por amas indígenas, acabavam adquirindo a Geral como primeira língua, pois “com o leite bebem também a língua”, tornando-se lusofalantes somente “depois de andarem alguns anos na escola e tratarem com os Portugueses que vão de Portugal”. O missionário sugere que, para reverter tal situação, “se prohiba que os filhos e filhas dos Portugueses sejão criados por Índios da terra”. (Reis 1961: 495)

A reprodução e difusão dessa língua geral ocorreu de forma mais sistemática e planejada com a catequese e o apoio da Coroa Portuguesa, porque ela permitia a comunicação com os índios e entre os índios. Várias leis que faziam parte da política de línguas de Portugal estimularam a expansão da LGA. Intervindo na polêmica entre os jesuítas e os moradores, no início do século 18, o governador João Maia da Gama indagava-se sobre a situação dos índios de filiação linguística não tupi, que eram trazidos para as aldeias de repartição próximas a Belém. Ele elaborou o seguinte raciocínio: se esse índio desconhecia tanto a língua portuguesa como a Geral, se ambas eram diferentes de sua língua materna, se ele teria de adquirir uma nova língua, por que então não aprendia diretamente o português? A resposta está no discurso do próprio governador, quando descreve que, enquanto esse índio dedica diariamente apenas “um quarto de hora ou meia” para aprender o português com o missionário, “o resto do dia e da noite passa fallando, conversando e tractando com os outros Índios e, com este contínuo tracto, aprende mais facilmente a Língua Geral que a portuguesa, e assim parece justo que na Geral se doutrinem (…)” (Reis 1961: 495)

Essa situação começa a mudar a partir de meados do século 18. Nessa época, a LGA era hegemônica como língua interna de comunicação interétnica. No entanto, esse quadro vai se reconfigurar diante do novo contexto criado com os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), que reconheciam o direito de cada país sobre o território efetivamente ocupado. Um dos critérios para definir a ocupação era a língua. Ali onde se falava português, ficava evidente que era território luso. Onde se falava castelhano, era território espanhol.

A questão residia em como provar essa ocupação em áreas litigiosas como Rio Branco, Rio Negro e Alto Solimões, onde nem o idioma português nem o espanhol haviam chegado e a língua hegemônica era a Língua Geral, que servia para a comunicação interétnica em toda a Amazônia. A Espanha acabou reconhecendo, finalmente, que ali onde se falava a Língua Geral era território português, considerando que os missionários, subordinados à Coroa portuguesa, foram os responsáveis pela expansão dessa língua de base indígena no trabalho de catequese. Mas a questão evidenciou a Portugal que, para consolidar suas fronteiras na América, era necessário, no plano de línguas, portugalizar a região, garantindo o fundamento jurídico de sua conquista territorial por meio da língua portuguesa. A política de línguas sofreu, então, uma reviravolta, marcada por interesses geopolíticos. Com a ascensão de dom José I ao trono e de Pombal como seu primeiro-ministro, a Coroa portuguesa proibiu a Língua Geral e oficializou o português.

Na Amazônia, nesse aspecto, o projeto de Pombal foi derrotado e a língua portuguesa continuou minoritária, especialmente na província do Amazonas, criada em 1850, separada que foi do Pará. Em 1861, o poeta Gonçalves Dias, nomeado visitador das escolas da província, vistoriou escolas do Solimões e do Rio Negro e constatou que o sistema não funcionava, porque na sala de aula era usado o português, quando a língua falada em casa, na rua e em todos os lugares era a Geral. O poeta recomendou, no entanto, a continuidade do uso obrigatório do português, para habituar as pessoas a falá-lo e ao mesmo tempo desabituá-las com a LGA (Dias 1861:16), o que passou a ser feito em escala cada vez maior.

Quando Gonçalves Dias viajou pelo Rio Amazonas, sua calha central já era cruzada por 12 a 15 navios a vapor da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas, criada pelo Barão de Mauá, o que produziu, efetivamente, um efeito quase mágico na vida da população. Vinte cinco anos depois, em 1890, o Rio Amazonas era “sulcado por mais de cem vapores, de todas as lotações, e as bandeiras de muitas nações diversas tremulavam em seus mastros” (Marajó 1895: 46). Os vapores trouxeram dentro deles, no período de 1872 a 1910, cerca de 500 mil nordestinos, distribuídos pelos seringais, vilas e povoações, todos eles portadores da língua portuguesa, modificando o quadro sociolinguístico da Amazônia e retirando da Língua Geral qualquer possibilidade de continuar em expansão. É a partir daí que podemos falar em hegemonia da língua portuguesa.

Hoje, no início do século 21, o português é irreversivelmente hegemônico, mas ainda convive, em território da Amazônia brasileira, com mais de cem línguas indígenas, cujos usuários resistiram e foram capazes de preservá-las, cuidando, zelando e lutando por elas mesmo em condições históricas adversas. Muitos deles são bilíngues, com diferentes níveis de competência na língua portuguesa, e outros continuam monolíngues em língua indígena. Três línguas indígenas – o nheengatu, o baniwa e o tukano – foram declaradas pela Câmara Municipal de São Gabriel da Cachoeira, em sessão realizada em 22 de novembro de 2002, línguas cooficiais do município de 112 mil quilômetros quadrados, maior que Portugal, onde são faladas 22 línguas diferentes. O Conselho Nacional de Educação (CNE), em reunião extraordinária realizada de 11 a 13 de março de 2003, em Brasília, iniciou os procedimentos para apoiar a implementação da medida.

Durante vários séculos, a língua portuguesa e as línguas indígenas, por meio de seus falantes, ficaram se roçando umas nas outras, num processo que a sociolinguística chama de línguas em contato, o que marcou o português regional e os idiomas indígenas. O português incorporou milhares de palavras indígenas, além de outras marcas, como, por exemplo, no processo do chamado “alçamento” das vogais, com o fechamento vocálico, visível em casos como “popa da canoa”, que ainda hoje, em determinadas áreas do interior, se pronuncia pupa da canua, o que também é atribuído ao substrato de língua indígena.
Como vimos, a língua falada pela maioria dos amazonenses até o século19 era o nheengatu. Essa situação só mudou no período da borracha, entre 1877 e 1914. Foi aí que o português predominou e a maioria dos amazonenses e paraenses esqueceu o nheengatu. Sabemos que línguas nascem, crescem e morrem. O grave, porém, é que ninguém se lembra mais que esqueceu. Pensamos que aqui sempre se falou o português. “O que se opõe à memória não é o esquecimento, mas o esquecimento do esquecimento”, sugere o filósofo francês Giles Deleuze.

Não interessa apenas aos falantes de uma língua a sua preservação. Patrimônio da humanidade, a chamada glotodiversidade vem sendo estimulada por governos e por organismos internacionais. A história da América, escreveu Bartomeu Meliá, é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas.

*É professor