Campanha antiaborto: entre o desserviço e a hipocrisia

Estávamos no fim do jantar quando ela decidiu quebrar o silêncio. "Parem de me oferecer vinho. Estou grávida e não posso beber". A insistência diante de uma taça vazia adiantou uma notícia à espera da hora certa. A ideia era chegar em casa na segunda-feira e me presentar com um par de sapatinhos vermelhos comprados na véspera – a senha para o anúncio de que, em breve, seríamos muitos. 

Por Matheus Pichonelli*, na Carta Capital

campanha Brasil sem aborto - Agência Brasil

A surpresa levou meu pai a levantar as mãos para o céu e abrir outra garrafa de vinho – que, a partir de então, só o pai e os avôs, os anfitriões da noite, poderiam beber.

Motivos para celebrar não faltavam. Aos 30 anos de idade, já tinha perdido as contas de quantos aniversários meu pai me telefonara para me congratular e perguntar: "Quando vem meu neto?". Não sei se existe hora certa para a chegada de um filho, mas a ocasião parecia perfeita.

Tínhamos emprego fixo, uma casa com três quartos, um bom tempo de relacionamento. A gente se dava bem e não tinha qualquer vício além do vinho antes do jantar ou a cerveja do fim de semana. Tínhamos confiança um no outro de que seríamos, ou nos esforçaríamos ao máximo, para sermos bons pais. Nenhum de nós corria o risco de refugar e desaparecer no dia seguinte.

Tínhamos plano de saúde e alguma economia para consultas em clínicas particulares. E, apesar de nosso grito de independência financeira e emocional em relação a nossos pais, dado uma década antes, sabíamos que, se algo acontecesse com um de nós, haveria uma fila de avôs, bisavôs, tios, tios-avôs e amigos atentos para cuidar da criança em caso de urgência. Os caminhões de fraldas que entupiram nossa casa em poucos dias eram o melhor parâmetro: a barriga que crescia era motivo de alegria, e não de vergonha.

A celebração de nossos pais era a prova de que a nossa decisão não fora tomada entre uma garrafa e outra, mas sim ao longo de quase dez anos. Isso nos deu a segurança necessária para seguir em frente, mais ou menos como os amigos da mesma idade que naquele ano promoveram o maior baby boom de toda a cidade. Alguns deles, para meu espanto, hoje usam a imagem dos filhos, obviamente amados, para levantar a bandeira da hashtag antiaborto. Como se a paternidade, em si, nos garantisse uma reserva moral sobre um mundo fora da nossa janela e nossos parâmetros.

Nessas correntes de solidariedade aparente, insufladas por declarações descabidas do novo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), as manifestações são confusas. Já li, por exemplo, algo como “Eu amo meu filho e sou contra o aborto”. Me pergunto, já sem a mesma paciência cristã, o que isso – um sentimento particular – diz sobre um debate que é, em si, político. É mais ou menos como dizer “sou a favor da aposentadoria porque gosto do meu pai”. Em um caso como o outro, o meu sentimento não diz nada sobre o debate a não ser a mim mesmo.

Ainda que não pareça, meu exemplo particular de menino branco de classe média com relação estável e casa em condomínio não me autoriza a escrever, nas linhas acima que, ao celebrar a chegada de um filho, eu decidi dizer “sim” à vida. É mais ou menos o inverso: a vida me permitiu dizer sim. Ser mãe ou pai não é exatamente padecer no paraíso, mas é bem mais fácil chegar a ele quando tudo conspira a favor – a começar pela taça de vinho erguida ao alto, em sinal de alegria e apoio, pelos avós. Em outras condições, seríamos enxotados da casa. Pois aquela alegria poderia se converter em desespero com uma única mudança de variável. Por exemplo, a idade. Uma coisa é dar a notícia aos 30. Outra, aos 14. Entre uma idade e outra, perdi as contas de quantas vezes eu e os amigos da mesma idade fomos pegos por algum lapso de métodos contraceptivos. Alguns correram para a farmácia. Outros, aos chás abortivos. Outros comemoraram com urras o exame negativo. Com o tempo e a maturidade, muitos deles se tornaram bons pais – e muitos, talvez esquecidos dos apertos de um passado recente, agora se engajam na campanha após as declarações de Eduardo Nem Debaixo do Meu Cadáver Cunha.

Vendo essas manifestações, volto ao jantar com meus pais, quando souberam que seriam avôs, e penso que bastaria que um de nós estivesse desempregado para que a notícia transformasse o vinho da noite em vinagre. Ou que o emprego de um de nós corresse risco em razão da gravidez – nem todo mundo tem carteira assinada, direito a férias ou licença-maternidade; entre ser mãe e não ter dinheiro durante os meses de gestação e amamentação, há quem não tenha margem para escolhas morais. Bastaria também que um de nós tivesse de abrir mão de uma oferta irrecusável de estudo ou trabalho em outra cidade ou país. Ou que um de nós estivesse em tratamento contra drogas ou álcool. Ou que não tivéssemos nossa casa – e anunciássemos que nossos pais teriam de cuidar de três crianças num mesmo cômodo a partir de então. Ou que o "sim" à vida era apenas (e não apenas) uma ferramenta para evitar o rompimento de uma relação baseada em chantagens ou agressões. Ou que os pais fossem estranhos um para o outro (em vez de sete anos, poderíamos ter sete dias de namoro). Ou – pior – que a gravidez era resultado da violência de uma relação não consensual.

Todos estes fatores podem pesar e não ser preponderantes na hora da decisão – e julgar se são razões suficientes para interromper uma gravidez cabe, ou deveria caber, apenas aos sujeitos da decisão: os que podem calcular, pesar, medir, sentir e suportar as dores da própria condição. Reduzir essa escolha a uma vocação ou vontade é uma contribuição tão rica para o debate quanto publicizar o próprio amor. Isso diz mais sobre o manifestante, e sua (pouca) vontade de mudar uma realidade perversa, do que sobre a causa em si. Nessa realidade, é possível tapar os olhos ou não, mas não vai evitar que todos os anos milhares de mulheres sejam empurradas para o abismo da ilegalidade. Pois com ou sem as âncoras do moralismo barato, elas seguirão decidindo sobre o próprio destino.

Quando damos ao Estado a prerrogativa de decidir por nós, damos a ele o direito de uma imposição. Com ele, o direito de tabelar a vida alheia em primeiras, segundas e terceiras categorias. Caso as leis antiaborto sejam endurecidas, como pedem as manifestantes "pró-vida", tudo continuará como está. Só que alguns pagarão pela dignidade. Outras, se não morrerem na entrada, serão algemadas na saída. Em outras palavras: apesar dos bons sentimentos por nossos bebês, a ojeriza antiaborto publicizada em rede serve apenas para deixar tudo como está: ricos recorrem a clínicas clandestinas equipadas; pobres (as mães e os filhos) morrem no beco. Se isso não é digno da nossa ojeriza é porque a nossa humanidade é um conceito natimorto.

Em tempo: Fortalecido pela eleição ao comando da Câmara, Eduardo Cunha mostrou a que veio ao tirar da gaveta projetos que dificultam a adoção de crianças por homossexuais e que ofendem a comunidade LGBT com a instituição do Dia do Orgulho Hetero.

O deputado é um craque do mundo político: cavou seu espaço em meio a uma guerra fratricida entre PT e PSDB sem romper ou se aliar necessariamente com nenhum dos lados. Mas de gente ele nada entende. Cunha, como tantos, se aferra em pressupostos verdadeiros para atingir conclusões falsas (ou desonestas) acerca da ideia de liberdade. Esta pressupõe um mundo em condições iguais – e simétricas – de direitos. Sendo assim, se gays e negros podem sair às ruas manifestar o seu orgulho, heteros e brancos também podem, certo? Poder pode, mas isso não os iguala em condições.

Afinal, quais direitos, como jovem branco e hetero, posso pedir em uma exortação pública de orgulho à minha cor ou sexualidade? Em minha vida, jamais fui enquadrado como elemento suspeito. Nem vi as portas de entrada para a escola ou o mercado de trabalho se reduzirem à minha frente: os professores, os amigos, os diretores e a propaganda da Margarina sempre me deram a sensação de acolhimento – um acolhimento normativo e monocromático. E, em que pese as brincadeiras por meus hábitos religiosos da infância, ninguém me abordou com lâmpadas e correntadas no meu rosto quando andava nas ruas com a Bíblia ou de mãos dadas com a namorada.

Movimentos de afirmação são movimentos para combater o mal-estar da invisibilidade. Esta invisibilidade decorre do aniquilamento e do confinamento de determinados grupos a determinados espaços – quase sempre longe do centro, das escolas, das empresas, dos centros culturais, dos governos, etc.

Quem jura ver racismo em ações afirmativas ou privilégio em dia de orgulho gay não sabe o que é ser invisível. De minha parte, dispenso um dia em minha homenagem, e me solidarizo com as reações ao escracho agora patrocinado pela maior autoridade da Câmara. Nos debates sobre aborto e direitos das minorias, a ingenuidade e a má-fé andam juntas. São a argamassa do mundo tal como está: uma ilha de privilégios cercada de sangue.

*Mateus Pichonelli é Jornalista e cientista social, escreve sobre cultura e comportamento no site de CartaCapital