Poesia de resistência

Esta semana o caderno cultural do Vermelho, Prosa, Poesia e Arte traz uma série de trabalhos dedicados à resistência à ditadura militar. Passados 51 anos do golpe que depôs o presidente João Goulart, o Brasil ainda não virou esta página de sua história, criminosos permanecem impunes e muitas vítimas ainda têm as feridas abertas. 

Alex Polari - Bruno Torturra

A resistência à ditadura foi feita de muitas formas, por meio da luta armada, política e também através da cultura. Selecionamos poemas de Alex Polari e Alipio Freire, dois militantes que entregaram a vida à luta pela redemocratização do país.

Aos 20 anos de idade Alex Polari era membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), responsável pelo sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, foi nesta ação que caiu preso, no Rio de Janeiro. Passou nove anos na prisão, só foi liberado em 1980, após a anistia.

Durante os anos de cárcere, Alex foi barbaramente torturado e testemunhou a tortura de outros presos políticos, entre eles, Stuart Angel, a quem dedica uma de suas poesias. Da prisão escreveu uma carta à Zuzu Angel, mãe do militante preso, onde relatou as atrocidades cometidas pelos militares contra o jovem de 26 anos que foi arrastado por um jeep pelo pátio interno da base aérea do galeão com a boca no cano de descarga do veículo.

Em 1978, ainda preso, publicou o livro Inventário de Cicatrizes, com poesias que escreveu no cárcere. Os versos são duros, tristes e revoltantes, trazem à tona toda a crueldade praticada nos porões da ditadura militar. Atualmente Alex se dedica ao Santo Daime e é um dos líderes da comunidade Céu do Mapiá, no Acre.


Alípio Freire 

Alípio Freire era militante da Ala Vermelha, que apostou na luta armada como forma de resistência à ditadura militar. Foi preso aos 23 anos pela Operação Bandeirante (Oban), passou três meses sofrendo os “interrogatórios” do Doi-Codi e do Dops e depois foi transferido ao Presídio Tiradentes.

Após a anistia, Alípio retomou a profissão de jornalista e continuou na militância, atuou, inclusive, na fundação do PT. “No presídio, alguns (torturadores) diziam que tinham vencido a guerra, mas eu dizia que era só uma batalha. Eu gostaria que eles estivessem vivos hoje para perguntar quem, realmente, ganhou. Eu posso contar para os meus filhos e netos, com muito orgulho e muita honra, o que vivi, já eles se escondem como ratos”.

Leia as poesias de Alex Polari e Alípio Freire:

Alex Polari

Trilogia Macabra: III – A Parafernália da Tortura

Nos instrumentos da tortura ainda subsistem, é verdade,
alguns resquícios medievais
como cavaletes, palmatórias, chicotes
que o moderno design
não conseguiu ainda amenizar
assim como a prepotência, chacotas
cacoetes e sorrisos
que também não mudaram muito.
Mas o restante é funcional
polido metálico
quase austero
algo moderno
com linhas arrojadas
digno de figurar
em um museu do futuro.
Portanto,
para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,
não é necessário mais rodas, trações,
fogo lento, azeite fervendo
e outras coisas
mais nojentas e chocantes.
Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre
hoje faz-se morrer a velha morte de sempre
com muito maior urbanidade,
sem precisar corar as pessoas bem educadas,
sem proporcionar crises histéricas
nas damas da alta sociedade
sem arrefecer os instintos
desta baixa saciedade.
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Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)

Eles costuraram tua boca
com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
Um vento gelado soprava lá fora
e os gemidos tinham a cadência
dos passos dos sentinelas no pátio.
Nele, os sentimentos não tinham eco
nele, as baionetas eram de aço
nele, os sentimentos e as baionetas
se calaram.
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
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Alípio Freire

Aurora Maria Nascimento Furtado
– a Lola

Dos diálogos com Carlos Drummond de Andrade
Para Laís e
Sandra
– irmãs da Aurora

A rosa do povo despetala-se.
Percebo que estamos amputados e frios.

Eles assassinaram brutalmente uma das nossas mais delicadas e decididas guerreiras


no entanto
o Encouraçado

Aurora

ainda apita e sinaliza na neblina das nossas memórias
cada vez que tinges de vermelho os céus
para anunciar um novo dia.

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Da tragédia
Dos Diálogos com Peter Weiss
Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara.
Mas o pau-de-arara
também sobreviveu.

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O poeta pede vênia e
dialoga com o camarada
Carlos Marighella
Com mediações de Tião Motorista,
Jamelão, Billy Blanco e Mao Tsétung

Para Clara Charf e
Carlinhos Marighella

1.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
– Nos ensinou o Camarada Carlos Marighella.
O poeta não apenas concorda e subscreve
como pratica
(este texto é apenas um exemplo)

2.

Quem samba fica.
Quem não samba vai embora.
– Foi outra orientação do mesmo Camarada.
Neste caso porém
o poeta pede vênia
abandona o samba de Jamelão e Tião Motorista
e respeitosamente se alia a Billy Blanco:
A porta fecha enquanto dura o vai-não-vai
Quem está fora não entra
Quem está dentro não sai
Mas a orquestra sempre toma providência
Tocando alto pra polícia não manjar
E nessa altura
Como parte da rotina
O piston tira a surdina
E põe as coisas no lugar

É preciso não ter medo
é preciso ter a coragem de fechar a porta
tirar a surdina do piston
e pôr as coisas no lugar.
Sempre é fundamental pôr as coisas no lugar
Era fundamental pôr as coisas no lugar
Principalmente naquela altura dos acontecimentos.
No entanto sou capaz de entender:
o nosso bravo Camarada não teve tempo
e o que sobrou dos seu Exército era muito jovem e inexperiente.
Apenas das justas contradições no seio do povo
como diria Mao Tsétung.
Não mais que isto.

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Perdas e danos
A classe trabalhadora e o povo
Para Raquel e
Delmar Mattes que
como milhares de outros militantes
e suas famílias,
viveram décadas a fio
na mais absoluta clandestinidade.
Dados da Comissão da Anistia
Do primeiro semestre de 2011
Informam que
no Brasil da ditadura
fomos
(entre civis e militares)
308 mil investigados
milhares de cassados
30 mil torturados
500 assassinados
(dos quais cerca de 150 dados como desaparecidos.)
Incontáveis os que tiveram de viver clandestinos ou se exilar.
Isto para não falarmos
Da concentração da riqueza e da propriedade
Do aprofundamento das desigualdades
Do arrocho salarial
Da perda de direitos dos trabalhadores
Do êxodo rural
Do crescimento das favelas e submoradias
Da ampliação da miséria
Do crescimento vertiginoso da dívida externa
Da extinção de todos os direitos públicos
e dos milhões de homens e mulheres
que viveram sob terror permanente.
Foi ainda a ditadura que forjou e divulgou a consigna
O que é bom para os Estados Unidos
é bom para o Brasil.

NB

As perseguições violências e crimes do regime instalado com o golpe
foram apenas meios
para concretizar o programa do grande capital.

Os massacres e chacinas deste início de século 21
contra os pobres do campo e das cidades
também.