Nina Rizzi, a resistência e o cotidiano
A Letras Vermelhas desta semana traz a obra de Nina Rizzi, a poeta paulista radicada em Fortaleza. Escritora, historiadora e arte-educadora, Nina escreve sobre a resistência, cotidiano e as pessoas comuns.
Publicado 17/04/2015 17:17 | Editado 13/12/2019 03:30
Com dois livros publicados: N’zinga e A duração do deserto, Nina também costuma publicar seus textos e poemas também em antologias, revistas em páginas na internet, entre elas Zunái e Germina.
Veja alguns poemas de Nina Rizzi:
a morte do favelado, réquiem
– motivo para aidan
os buracos vazios de vez
trinta e uma mil balas para pacificação
esturricam no chão
2.
um dia de manhã sentei naquele chão
tão preto
tão morto
fechei os olhos garrada em seu sangue seco
e pensei em quem seria
quem foi
ele os invisíveis
abri
como uma refugiada de guerra
uma vaca magra na fila do abate
3.
ouço as sirenes indo embora
chegando
como uma marcha de chopin
os pássaros
o que é vivente
estão lá – longe
desse silêncio de mármore
outro carro
mais uma nota na marcha
insinuação de morte
4.
perene os vinte um sabores
picolé pipoca algodão doce tapioca
que os meninos se indo
saberão ainda – ausentes
bombas pás
rastros de névoa
aqui acolá
dissipam na floresta de ossos
**
o poeta de qui l' query-esborrat
o poeta de qui l' query-esborrat nasceu na somália
– qui l' query-esborrat é mais um nome que soa
muito bem num poema pronto a ser esquecido –
muito em breve o poeta qui l' query-esborrat
não será um poeta nascido na somália
a somália será um cemitério de ossos
varrido para o nunca
a somália nunca terá existido como nunca existiu
qui l' query-esborrat e o poeta de qui l' query-esborrat
o poeta nasceu pronto a ser esquecido
como a somália atlântida palmyra heracleion ou o sergipe
– o sergipe que só apareceu no horário eleitoral
como chiste por estar à frente do ceará em programas
de habitação cultura e renda –
o poeta de qui l' query-esborrat tem um nome
como arias calixto mombaça cervan lima mitzrael vinhas
o poeta pronto a ser esquecido não goza ou agoniza
do nada que sabe sabe que o poeta é mínimo
mas o poema o poema voará com qui l' query-esborrat
a imobilizar os países do futuro as mãozinhas mesquinhas
o poeta de qui l' query-esborrat meteu um balaço
direto no tempo na história na verdade nos tratados
nas ciências teologias títulos e virtudes
um balaço com um riso um poema vivo
**
um caimento perfeito
minha filha se senta de pernas bem abertas
usa uma calcinha infantil que lhe cobre toda quase nada
esparrama tinta e grãos no chão
se arreganha, se arregala.
combina em tudo com a paisagem:
meia dúzia de livros que logo serão trocados
utensílios de cozinha, duas redes, dois banquinhos
em quase nada tudo cabe
e cabia ainda numa paisagem tribal cheia de corpos nus
brilhantes, suados e lisos
nus a natureza pronta.
da janela bem aberta um espaço outro
paisagem para o nada e sua gente que em tudo não combina dentro
– fecha essas pernas, menina!
junto ao cimento e caos uma pessoa nua de tão pura
exala uma inverdade, um absurdo
por isso toda a gente está coberta de peles artificiais
incríveis botas de pisar o chão doído.
faz sentido.
um mundo que se esvazia para o nada.
volto dentro
a tinta tinge o chão, os grãos, a parede
suas pernas bem abertas
– quer dar uma volta lá fora, pequena?
não.
aqui dentro arde e treme uma outra verdade
que lá fora é invasão, atentado, feiura
corpos fora da des-paisagem.
faz sentido.
dentro é tribo, tecido chão macio pra se morar.
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Do Portal Vermelho