José Goulão: Chama-se a isto de democracia

Cada deputado conservador da elegante maioria absoluta que compõe agora o Parlamento de Sua Majestade custou 34.244 votos de suor ao denodado Cameron, esse produto com a legítima e legitimada chancela da City.

José Goulão, no Mundo Cão

Cameron

Parece justo, o homem conseguiu tirar da cartola à última hora um milagroso anúncio de crescimento econômico e vai daí os eleitores recompensaram-no, driblando até as empresas de sondagens, onde, ao que consta, vão rolar cabeças, já não na Tower, felizmente apenas em sentido figurado.

Cada deputado do sempre aplicado, e agora sacrificado, trabalhista Ed Miliband custou-lhe um preço mais alto, 40.290 votos e, apesar de ter ampliado a porcentagem em 1,5 pontos, acabou por perder 24 deputados. Será porque os eleitores britânicos preferem os originais às imitações e conservadores neoliberais por conservadores neoliberais antes os legítimos como Cameron e não os herdeiros de Blair, o tal que acabou de vez com o trabalhismo nas ilhas e, em boa verdade, em todo o continente? Só eles saberão responder.

Cada um dos 8 deputados liberais democratas do infeliz senhor Clegg, agora despromovido de adjunto de Cameron para a vileza do anonimato, custou-lhe 301.986 votos, 10 vezes mais que cada deputado do seu ex-chefe. É obra. Tanta generosidade para cumprir as ordens da exigente City, numa coligação de sacrifício e serviço privado, e a paga foi esta.

E que dizer do truculento Neil Farage, o homem que não tolera que os restos do Império tenham vindo desabar na insigne Metrópole, manchando e sujando a pura linhagem britânica? Um deputado custou-lhe 3.881.128 votos, quase quatro milhões de votos, 113 vezes mais que cada deputado do iluminado Cameron. É bem feito, dirão. Que não trouxesse para a arena política o culto do racismo, da xenofobia, que ainda assim lhe valeram quatro milhões de votos, 12,6%.

Infelizmente, ele não foi castigado por isso. Infelizmente continua a ter uma base eleitoral distribuída pelo todo nacional que o encorajará a envenenar as mentalidades contra a imigração, contra as outras culturas e costumes. Ele, Neil Farage, como muitos outros (um deputado verde custou mais de um milhão de votos), foi vítima de um sistema eleitoral apresentado como o paradigma da pátria da democracia e que não é democrático, isto é, não respeita a vontade dos eleitores e deita milhões de votos para o lixo. E cada voto, em democracia, deve contar, deve estar espelhado na composição final do Parlamento.

Dir-se-á que cada deputado do Partido Nacionalista Escocês custou apenas 26 mil votos, menos ainda que os de Cameron, o que parece contrariar a tese de o sistema estar imaginado para dois partidos desde as origens, quando tudo se resumia a conservadores e liberais, depois substituídos estes pelos trabalhistas. De fato os nacionalistas escoceses tiraram proveito da óbvia concentração do esforço nas 59 circunscrições nacionais das 650 do universo eleitoral britânico, conquistando 95% dos lugares com a vontade expressa de 50% dos escoceses. Mais uma prova de que o sistema não é democrático e, a sê-lo, deveria ser dada imediatamente a independência à Escócia.

Chamam democracia a este sistema designado uninominal majoritário de um turno, mas ele nada tem de democrático. O Parlamento não representa as vontades manifestadas pelo corpo eleitoral, transforma pouco mais de um terço dos votos (36,9% foi quanto tiveram os conservadores) numa maioria absoluta. Chama-se a isto “estabilidade”. Aliás, para que conste, ele foi inventado pelos conservadores britânicos para se garantirem no poder transformando maiorias simples em maiorias absolutas. Nos tempos que correm, caso não haja maioria absoluta, como os dois maiores partidos conseguem 87% dos lugares com 66% dos votos, e leem ambos pela mesma cartilha econômica, teremos uma espécie de partido único institucionalizado. Mais “estabilidade” não é possível.

Por isso, através dessa Europa, as castas políticas dominantes fundidas no neoliberalismo conspiram nos bastidores, como acontece em Portugal, para transformar o sistema eleitoral britânico, e o seu sucedâneo norte-americano, em prática única. Faltando ao respeito às vontades manifestadas por milhões de eleitores em nome da democracia e da “estabilidade”. Uma fraude.