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Mao Tsé-Tung, o poeta

Um aspecto notável da rica biografia do líder revolucionário e primeiro Presidente da Nova China foi sua obra poética. Mao Tsé-Tung era um intelectual com formação tradicional confuciana. Seus quase quarenta poemas – uma obra pouco numerosa, mas importante na tradição literária chinesa – seguiram os modelos clássicos do país, anteriores ao movimento Modernista. Em sua poesia, é visível a influência dos grandes mestres da Dinastia Tang (618-907, período do auge da poesia clássica chinesa).

Mao Tsé-Tung - Reprodução

Essa influência se nota bastante nos textos apresentados a seguir. Percebe-se fortemente uma característica que se repete em toda a poesia de Mao: a guerra, a revolução e a mudança social se representam através das visões de cataclismos, catástrofes naturais, em imagens trágicas e grandiosas – recurso que retoma da poesia dos clássicos Li He, Li Bai e Du Fu, por exemplo. Também as frequentes referências a episódios, histórias e textos antigos é típica daqueles modelos.

Esses dois aspectos estão no primeiro poema, Beidaihe (nome de praia conhecida no norte da China), escrito em 1954.

O segundo poema, de 1935, Kunlun (nome de uma das maiores montanhas do país), também trabalha um motivo clássico: o mundo é contemplado desde o alto de um grande pico.

O terceiro, Changsha, de 1925, um dos mais citados de Mao – construído em reflexão sobre lembranças do tempo de estudante – tem o nome da capital de sua província natal, Hunan. Nele se observa, novamente, a associação dos acontecimentos da natureza com os do mundo humano, recurso muito utilizado na poesia clássica chinesa.

Na mesma linha, o quarto poema, A Longa Marcha, de 1935, é cheio de referências a montanhas e rios da geografia grandiosa do país, inclusive alguns onde ocorreram episódios memoráveis da marcha épica da Revolução Chinesa. No Rio Dadu, por exemplo, ocorreu importante batalha contra o Guomindang. As montanhas Min (Minshan), na fronteira das províncias de Sichuan e Gansu, eram próximas ao final da marcha.

O quinto, As milicianas, de 1961, é um poema na forma clássica jueju, de quatro versos, usada por muitos escritores antigos para comentar a impressão causada pela presença de uma mulher. Mao vale-se dessa forma para descrever uma cena bastante contemporânea.

As obras foram traduzidas diretamente do chinês pelo escritor e diplomata Ricardo Primo Portugal. Com formação em Letras pela UFRGS, viveu na China e trabalhou na embaixada do Brasil em Pequim e nos consulados gerais de Xangai e Cantão. Entre suas publicações estão Antologia da Poesia Chinesa – Dinastia Tang (Unesp, 2013, com Tan Xiao, 56º Prêmio Jabuti, 2014, categoria tradução, 2o lugar); Zero a sem – haicais (7Letras, 2011); Poesia completa de Yu Xuanji (Unesp, 2011, com Tan Xiao, finalista do 54º Prêmio Jabuti na categoria tradução); DePassagens, poemas (Ameop, 2004).

Leia os poemas de Mao Tsé-Tung:

Beidaihe

Tempestades desabam às terras do norte
E as brancas ondas, assaltos aos céus
Além de Qin’huandao barcos de pesca
Perdem-se ao infinito mar, aos olhos
Para onde foram?

Faz quase dois milênios
Partiu para o leste o rei Wu de Wei
Rumo a Qianshi – dele resta: um poema
Geme hoje o mesmo vento de outono
Mas tanto este mundo mudou

Kunlun

acima do mundo varando o vazio
o rude Kunlun a divisar todas
as primaveras em suas cores
e em branco jade três milhões de dragões alçam-se
ao voo arrojam escamas enregelam céus
e no verão torrentes derretem-se inundam
caudais transbordam rios tornam
homens em peixes tartarugas

sobre mil outonos de méritos e crimes,
quem poderia arbitrar com justiça
pois então agora digo, Kunlun,
não te quero assim alto
nem tão nevado te quero

pudera apoiar-me ao céu
e empunhar a espada preciosa
em três partes cortaria
uma daria à Europa
uma para a América e outra
à Ásia em partilha

e seria ao mundo a paz maior
e todo o globo se igualaria
mesmo frio e calor

A Longa Marcha

Não teme a dura marcha o exército vermelho,
dez mil caudais, penhascos, vence com leveza,
as Cinco Serras, vagas mínimas que oscilam,
o grande Wumeng reduz-se a alguns torrões de argila.

Tíbias escarpas batem-se a Areias Douradas,
cadeias gelam o Rio Dadu no aço frio.
Por fim, Minshan, milhas à neve, e alegrar-se:
às três milícias, cada rosto se ilumina.

As milicianas (inscrição para uma fotografia)

Fuzis ao ombro, resolutas e galhardas,
sob o esplendor da aurora ao campo de exercícios,
filhas da China têm aspirações distintas:
desprezam sedas, prezam roupas de combate.

Changsha

solitário de pé encaro o outono
ao frio, desde a Ilha das Laranjas
vejo o Rio Xiang fluir ao norte
milhares de montanhas avermelham-se
por bosques tingidos em rubros andares
e sobre as verdes águas várias transparentes
cem barcos competem em esforço
águias batem-se ao vazio infinito
peixes enxameiam pelas tênues águas
miríades de seres rivalizam livres
contra um céu glacial, tomados de imensidade

e ora indago à terra magna infindável
que mestre é este a reger quem imerge
ou vem à tona pois outrora aqui estive
e os companheiros de meses anos
replenos, coração de estudante
aqueles tantos jovens a intensa flor
da idade irrestritos em desafio
apontávamos montanhas vastos rios
arrebatados brados nossas obras davam
senhores do mundo por monturos de merda

como não lembrar:
em meio à torrente estapeávamos as ondas
a levantá-las contra os barcos, e avançávamos