Cilene Victor: De Castelo do Piauí ao jornalismo de paz

Seria pura insanidade estabelecer qualquer conexão direta entre o jornalismo de conflito e o assassinato de Gleison Vieira da Silva, um dos jovens condenados pelo estupro coletivo de quatro meninas, em Castelo do Piauí, que resultou na morte de uma delas.

Por Cilene Victor, no GGN

Adolescente condenado por estupro coletivo é morto dentro de cela

Tão insano seria não estabelecer qualquer conexão entre a celebração da vingança e o jornalismo de conflito praticado diariamente no Brasil.

Vale lembrar que conceitos como os de jornalismo de paz e jornalismo de conflito (não construtivo), desde suas concepções, décadas atrás, têm focado na realidade de países em guerra, em conflitos aparentemente mais densos que os vividos aqui. Por isso, pode soar estranho discutir a urgência do jornalismo de paz em um país aparentemente sem guerra.

Cada veículo jornalístico parte de valores-notícia aparentemente claros para determinar quais fatos serão noticiados. E caberá ao público o poder de escolher aquele que pautará as suas conversas e ganhará espaço nas suas mídias sociais.

O estupro de quatro adolescentes em um canto do Brasil chamado Castelo do Piauí, a 190 km de Teresina, em maio deste ano, contempla todos os critérios necessários para virar notícia. Primeiro pela brutalidade cometida contra quatro jovens indefesas e segundo pelo contexto da discussão sobre a redução da idade penal.

Duvido que alguém tenha conseguido terminar o seu dia em paz após assistir ou ler as reportagens sobre os detalhes do crime. É angustiante imaginar o sofrimento das meninas nas mãos de quatro adolescentes e de um homem de 40 anos. Terminamos o consumo desse tipo de notícia com um sentimento de vazio, com a sensação de que estamos perdendo o controle de tudo e seguimos na escuridão.

Depois da mera cobertura dos fatos, como se deu com esse de Castelo, com todos os detalhes da crueldade, é hora dos desdobramentos desses fatos – momento em que o jornalismo tem de dizer a que veio.

Esses desdobramentos são analisados, raras exceções, sob a luz do achismo e das conexões forçadas entre pobreza e violência, entre crimes e impunidade e todas as variáveis que uma busca no Google possa permitir.

O crime de Castelo do Piauí foi um prato cheio para discutir a impunidade de jovens protegidos pelo ECA. O auge da insanidade do jornalismo de conflito foi o Especial Maioridade Penal da Veja, cuja capa com os rostos protegidos dos quatro adolescentes trazia a chamada: “Eles estupraram, torturaram, desfiguraram e mataram – vão ficar impunes?

Levou cerca de um mês para vir a resposta parcial à pergunta da Veja: sim, serão punidos, um deles já está morto, assassinado com o mesmo grau de brutalidade do qual foi acusado de praticar contra as meninas.

A morte de Gleison Vieira da Silva ocorreu na semana em que os jornais de todo o mundo noticiavam a admissão de Behring Breivik na Universidade de Oslo, Nuruega.

Para quem não se lembra, Breivik é o extremista de direita condenado a 21 anos de prisão pelo ataque que matou 77 pessoas em 2011 na Noruega.

Nem de longe podemos comparar realidades tão distantes, no seu sentido lato, mas a condução das duas coberturas e a repercussão nas mídias sociais e nas conversas cotidianas são suficientes para entendermos os reflexos, ou melhor, os impactos do jornalismo de conflito lá e aqui.

O assassinato de Gleison foi comemorado em Castelo do Piauí com queima de fogos de artifício. Não poderia esperar algo diferente do povo que exigia vingança.

Véspera do aniversário de quatro anos do massacre cometido por Breivik, sua admissão na universidade foi lamentada por muitos noruegueses, mas a grande maioria compartilhou dos argumentos de Ole Petter Ottersen, reitor da Universidade de Oslo, ao lembrar a todos que o extremista tentou demolir o sistema norueguês e por isso eles precisam se manter fiéis aos seus valores e, portanto, a esse mesmo sistema. O reitor se referia, inclusive, ao direito de acesso ao ensino superior garantido a todos os detentos do país que atendem aos requisitos de admissão das universidades.

Dois anos antes, em 2013, Ottersen em um artigo assinado no The Guardian com o título “Porque Anders Breivik é bem-vindo em nossa universidade” já se antecipava aos impactos do anúncio da admissão de Breivik no ensino superior.

Pode parecer simbólico, mas a fala de Ottersen e o espaço que vários veículos jornalísticos deram a ela podem ter contribuído para gerenciar o risco de retaliações e revoltas em um nível inimaginável.

Se será efetivo, só o tempo dirá, mas essa demonstração de esforços para evitar conflitos não construtivos e quebrar os elos de violência é no mínimo inspirador, principalmente para nós que vivemos em tempos de linchamentos a céu aberto.

O crime do qual Gleison e outros adolescentes foram acusados nos remete à violência na sua forma mais primitiva. O seu assassinato dentro de um Centro Educacional Masculino de Teresina copia com perfeição a brutalidade primitiva.

E no conforto de um ar condicionado, jornalistas justiceiros rompem as fronteiras e conduzem seus leitores à mesma escuridão do crime cometido em Castelo do Piauí, promovendo um elo perigoso entre o jornalismo e a cultura da violência.

Como professora de jornalismo há 20 anos, evito o ceticismo para não contaminar meus alunos, mas devo reconhecer que precisamos fazer muito para a cultura da paz se sobrepor à cultura do conflito dentro das redações.

Embora as Novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Jornalismo contemplem entre as competências do egresso de jornalismo a compreensão e a valorização de “conquistas históricas da cidadania e indicadores de um estágio avançado de civilização, em processo constante de riscos e aperfeiçoamento: o regime democrático, o pluralismo de ideias e de opiniões, a cultura da paz, os direitos humanos, as liberdades públicas, a justiça social e o desenvolvimento sustentável”, não temos estudado nem discutido a fundo os impactos do jornalismo de conflito, como o materializado na capa da Veja e nos programas policiais de TV.

Hoje, mais do que nunca, o ciclo de vida do que escrevemos ou falamos nos meios de comunicação está totalmente fora de nosso controle.

Isso aumenta a nossa responsabilidade e revela a urgência de revermos as funções sociais do jornalismo.