Delmar Mattes: Obras da Sabesp não resolvem e ainda trazem risco

Em entrevista concedida ao jornalista Joel Santos Guimarães, o geólogo e especialista em planejamento urbano Delmar Mattes, aponta que a política mercantilista de gestão da água degradou reservatórios, piorou a qualidade da água e penaliza principalmente a população de menor poder aquisitivo de São Paulo. Mattes foi secretário de Vias Públicas e de Obras da Prefeitura de São Paulo na administração de Luiza Erundina (1989-1992).

crise hídrica

Segundo Mattes, as obras anunciadas pelo Governo do Estado para combater a falta de água não irão resolver os graves problemas causados pela crise hídrica que castiga São Paulo. Ao contrário, podem agravá-los. 

“Essas obras, feitas a toque de caixa, provocarão a perda de qualidade da água. Com isso, corremos o risco de voltar novamente a ter epidemias, como tifo, diarreia e outras que já tinham sido afastadas de nosso convívio”, afirma.

Segundo Mattes, é preciso mudar a política mercantilista de gestão da Sabesp para que água volte a ser um bem social e não um grande negócio para os acionistas da companhia.

O movimento Coletivo de Luta pela Água, do qual ele faz parte, defende a implantação de um Plano de Emergência, com ampla participação da sociedade, baseado nas seguintes medidas urgentes: decretação imediata de um estado de calamidade pública; não aumento de tarifas de água e cancelamento dos descontos concedidos aos grandes consumidores (shoppings, jornais, emissoras de TV, condomínios de luxo etc.); requisição de poços artesianos para uso comum e implantação de um programa de cisternas e reservatórios coletivos.

Leia, a seguir, a entrevista concedida a Joel Santos Guimarães:

Brasil Debate –
O governador continua insistindo na tese de que a falta de chuvas foi essencialmente a causa da crise hídrica, que castiga o Estado. Como o senhor avalia essa postura?

Delmar Mattes
– A falta de chuvas evidentemente constitui um fator imediato e importante. Mas esse não é o principal motivo. Riscos de desabastecimento nas macrorregiões de São Paulo e Campinas já vinham sendo alertados por especialistas e em trabalhos e estudos de planejamento. De um lado, porque já tinham ocorrido estiagens prolongadas em São Paulo em 2000/2001, 2004 e 2007/2008. Essas crises estavam provavelmente associadas às instabilidades climáticas que vêm aumentado nas últimas décadas e apontavam a nossa vulnerabilidade. O governador sabia muito bem que o sistema de abastecimento de água da região de São Paulo e Campinas estava aquém da sua capacidade de atendimento, provocando falta de água em muitos bairros periféricos. Ou seja, qualquer ocorrência de estiagem mais acentuada poderia causar uma grave crise hídrica.

E agora? Com as chuvas mais intensas acumuladas que ocorreram em fevereiro março, ainda existe risco de falta de água?

O risco de não podermos contar com as águas do Cantareira, o maior reservatório da macrorregião de São Paulo e Campinas, responsável pelo abastecimento de 6,5 milhões de habitantes da Grande São Paulo, é cada vez maior. O governo e a Sabesp decidiram utilizar todas as reservas disponíveis no Cantareira, avançando inclusive nos dois volumes mortos. Com essa decisão, ficamos sem alternativa para situações de extrema emergência.

As chuvas não aumentaram o volume de água dos reservatórios?

Não. Embora tenhamos tido chuvas intensas em fevereiro e março, elas não são suficientes para suprir o esgotamento do Cantareira. Basta dizer que no dia 27 de março o estoque de água no reservatório Cantareira era de 181,1 milhões de metros cúbicos, correspondendo a 63% dos dois volumes mortos e um pouco mais de 14% de toda a capacidade do reservatório. Ou seja, até esta data nem sequer conseguimos compensar o volume de água das reservas estratégicas.

Quais são as causas dessa profunda crise hídrica?

Essa crise é explicada, evidentemente, pelas políticas implantadas pelos dirigentes do Governo do Estado e pela Sabesp, principalmente, nessas duas últimas décadas. Elas podem ser resumidas em seis características mais importantes: mercantilização e privatização progressiva da gestão do saneamento básico; busca de água de melhor qualidade em mananciais cada vez mais afastados, não enfrentando, a crescente degradação dos reservatórios e de suas bacias hidrográficas já utilizadas e as políticas de “gestão de demanda”; perda progressiva da qualidade da água; imposição de políticas de saneamento básico cujos ônus e deficiências incidem cada vez mais sobre as populações de menor poder aquisitivo; falta de transparência, desinformação e manipulação de informações na mídia e não criação de canais participação e de controle social da sociedade; não enfrentamento da necessidade e da importância de elaboração de políticas estratégicas, como os efeitos das mudanças climáticas, políticas de saneamento ambiental e a necessidade de um programa de segurança hídrica.

Qual o peso da privatização e da gestão do saneamento básico nas políticas que orientam atualmente as decisões do Estado?

A mercantilização e a privatização progressiva da gestão do saneamento básico são as mais importantes e influem de forma determinante nas outras políticas elencadas. A mercantilização da Sabesp foi implantada a partir de 2002, durante o governo do PSDB e provocou uma grande transformação na gestão da água no Estado de São Paulo, ao determinar que a Sabesp passasse de uma empresa com função pública, cujo principal objetivo era fornecer água e prestar serviços de saneamento básico de qualidade e custo acessível para toda a população, à busca da lucratividade a qualquer custo. Essa mercantilização foi acompanhada pela venda de ações que não pertenciam ao Estado (a Sabesp é uma empresa de economia mista com 51% controlado pelo Governo) na Bovespa e Bolsa de Nova York. Em consequência, o saneamento básico no Estado passou a ser um dos negócios mais seguros e rentáveis e propiciaram lucros líquidos elevados, chegando a atingir mais do que R$ 1,9 bilhão em 2012 e em 2013.

Qual foi a consequência dessa busca pelo lucro?

Essa mudança radical fez com que não se desse prioridade e a devida importância para as atividades que não propiciassem lucratividade, como o tratamento de esgotos sanitários (embora cobrados, não executados plenamente), um maior empenho na redução do elevado índice de vazamentos na rede de distribuição de água, a não implantação de um amplo programa de reuso de água não potável para indústrias, comércio e serviços (visando à diminuição de consumo da rede), assim como um programa conhecido como de “gestão de demanda”, destinado a evitar desperdícios e permitir um uso racional da água. No ano passado, embora sem a mesma lucratividade dos anos anteriores, a Sabesp contabilizou um lucro de R$ 903 milhões. Também demitiu 450 funcionários desde o início deste ano, prejudicando os serviços que poderiam prestar num momento de tal gravidade.

O senhor citou a busca de água de melhor qualidade em mananciais mais afastados como outro erro na política pública da Sabesp…

Delmar Mattes – Para não enfrentar a crescente degradação dos reservatórios e das suas bacias hidrográficas já utilizadas (e as políticas de “gestão de demanda”), eles optaram pela busca de água de melhor qualidade em mananciais cada vez mais afastados, não enfrentando a crescente degradação dos reservatórios e das suas bacias hidrográficas já utilizadas. Essa política pode ser identificada novamente, no pacote de obras anunciado pelo Governo Estadual no final do ano passado (novembro/dezembro 2014), que prevê elevados investimentos em novas captações (rio Juquiá pertencente à Bacia do Ribeira a Iguape, já iniciada); novos reservatórios, interligações de reservatórios; duas estações de tratamento de esgotos para uso potável (Estação Produtora de Água de Reuso – EPAR na região Sul de São Paulo); perfuração de poços no Aquífero Guarani, para atender a região de Campinas.

Qual é o preço dessa política para a sociedade? As obras vão resolver a crise hídrica?

Continuaremos com os nossos mananciais submetidos a uma contínua degradação (incluindo os de maior porte: Billings, Guarapiranga, Cantareira e Alto Tietê) e inclusive por obras de infraestrutura por ele executadas, como o Rodoanel. As obras não vão resolver. São seis de porte menor que foram classificadas como emergências e serão executadas com extrema urgência para evitar um racionamento generalizado com um rodízio mais frequente, entre os meses de abril e setembro ou mesmo, tentar evitar o colapso no sistema de abastecimento. O problema é que essas obras deverão ser construídas a toque de caixa, sem maiores estudos, sem licença ambiental e autorização de outorga e também, sem licitação por serem emergenciais, provocando um aumento significativo nos seus custos.

E qual será o resultado disso?

Essas obras irão afetar a qualidade da água do sistema de abastecimento. Ou seja, estamos diante de uma crise tanto de disponibilidade como de qualidade da água. Com a implantação das medidas e obras emergenciais, a qualidade deverá passar por uma perda muito maior, com sérias consequências para a saúde da população nos próximos anos. Considerando todas essas graves condições e as mudanças em relação à perda de qualidade da água, corremos o risco voltar novamente a ter epidemias, como tifo, diarreia e outras que já tinham sido afastadas de nosso convívio.

O senhor tem dito que as populações mais pobres são as mais prejudicadas nessa crise. Ao mesmo tempo empresas e consumidores recebem um tratamento diferenciado da Sabesp.

O ônus dessa imposição de uma política de saneamento básico incide cada vez mais sobre as populações de baixa renda, que já vêm sofrendo com as deficiências da atual política de saneamento básico, tanto pela falta de água, como pela sua qualidade e deficiente sistema de coleta e tratamento de esgotos. Enquanto isso, a Sabesp ainda mantém contratos de tarifas vantajosas para grandes empresas e consumidores, os chamados clientes fidelizados, num total de mais de 500, como shoppings, condomínios, empresas comerciais e indústrias que continuam consumindo grande volume de água, enquanto que a população periférica se empenha na redução de seu consumo.

Quais são as saídas e as medidas para enfrentar a crise?

Precisamos mudar radicalmente as políticas adotadas até agora. Isso precisa ser feito, evidentemente, por intermédio de um amplo debate na sociedade. Sabemos que os prognósticos não são favoráveis e as previsões apontam para um agravamento, além da própria crise se estender provavelmente, por um período de no mínimo 2 ou 3 anos. Quanto às medidas emergenciais precisamos de um enorme esforço criativo para enfrentar a crise de forma organizada e coletiva. O movimento Coletivo de Luta pela Água, do qual faço parte, defende a implantação de um Plano de Emergência, com ampla participação da sociedade, baseado nas seguintes medidas urgentes: Decretação imediata de um estado de calamidade pública; Não aumento de tarifas de água e cancelamento dos descontos concedidos aos grandes consumidores (shoppings, jornais, emissoras de TV, condomínios de luxo etc.); Requisição de poços artesianos para uso comum e implantação de um programa de cisternas e reservatórios coletivos.

Quais são as prioridades desse Plano de Emergência?

Iniciativas para captar água em diferentes e variadas fontes (bicas, poços rasos e nascentes), fornecimento de água prioritário para os equipamentos de saúde, educação entre outros e um programa para assegurar a qualidade da água. Com uma ampla participação da sociedade surgirão propostas e medidas as mais criativas e adequadas para cada bairro ou região, assim como se criarão as condições para ampliar e aprofundar as discussões para as políticas adotadas pelo Governo do Estado e pela Sabesp.