Negros nos EUA: estado de rebelião permanente

Embora a luta do forte movimento negro dos EUA, que ganhou mais eloquência nas décadas de 50 e 60 do século passado, tenha proporcionado grandes vitórias na busca por igualdade e melhores condições de vida, a realidade dos afro-americanos ainda comtempla inúmeras desventuras.

Por Tayguara Ribeiro

Black Lives Matter

Os problemas sociais recorrentes há décadas são gravíssimos e questões como desemprego, pobreza, falta de oportunidades ou oportunidades desniveladas, preconceito e uma enorme dose de descaso apenas potencializam problemas raciais históricos no país e transformam bairros e cidades com grande concentração de pessoas negras em um barril de pólvora, pronto a explodir, a espera de uma faísca que, normalmente, é a mais que comum violência policial.

Cerca de 50 anos após a Suprema Corte declarar inconstitucionais as leis que separavam negros e brancos, diversos bairros em importantes cidades estadunidenses ainda são separados pela cor da pele das pessoas que os habitam.

Segundo disse Richard Rothstein, pesquisador associado do Economic Policy Institute, à BBC, as divisões raciais encontradas em cidades como Washington, Baltimore e Ferguson se repetem em outras cidades onde mortes recentes de homens negros geraram repercussão nacional e internacional.

"É um padrão que se vê no país todo porque as políticas que criaram essa segregação foram nacionais", afirmou. Ele ressalta, na entrevista ao veículo britânico, que entre 1930 e 1950 o governo norte-americano concedeu empréstimos para que construtoras erguessem casas nos arredores das cidades com a condição de que não fossem vendidas a negros. “Aos poucos, os empregos também se deslocaram para os subúrbios. Como as cidades do país precisavam de bons sistemas de transporte, a população urbana, majoritariamente negra, empobreceu. A valorização dos subúrbios, por outro lado, enriqueceu as famílias brancas que haviam comprado casas subsidiadas. Com o dinheiro que conseguiram com essa valorização, elas mandaram seus filhos para a faculdade e lhes garantiram bons empregos."

Rothstein, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, explicou ainda à rede britânica que os bairros centrais se deterioraram e ficaram superpovoados. E são tais práticas, de acordo com ele, que geraram o abismo existentes entre brancos e negros estadunidenses. "Hoje uma família negra média ganha 60% da renda de uma família branca média, mas os bens imobiliários de uma família negra equivalem a apenas 5% dos de uma família branca."

Nem mesmo a presença, pela primeira vez na história da nação do Norte, de um presidente afrodescendente amenizou a tensão social. Ao contrário, no período que engloba o governo de Barack Obama a quantidade de rebeliões foi significativa.

Quando Martin Luther King fez um de seus mais memoráveis discursos, em 1963, ele falou de muitas provações e tribulações que o negro norte-americano enfrentava historicamente. Suas palavras ainda soam verdadeiras atualmente.

"Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Não podemos estar satisfeitos enquanto a mobilidade fundamental do negro for passar de um gueto pequeno para um maior …. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos filhos são despojados de sua individualidade e roubados de sua dignidade, com sinais demonstrando que aquele lugar ou aquela situação é 'Apenas para brancos.' Nós não podemos estar satisfeitos enquanto o negro no Mississipi não puder votar e um negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivos para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça corra como a água e a retidão como uma poderosa correnteza. "

King talvez esperasse que não mais acontecessem casos como o de 1992, quando Los Angeles, uma das maiores e mais famosas cidades dos EUA, foi palco de uma revolta após a decisão judicial que absolveu quatro policiais brancos que no dia 3 de março mataram o um motorista negro, Rodney King. A insurgência chegou também a locais como São Francisco, Las Vegas, Atlanta e Nova Iorque e foi considerada a maior da história recente da nação da América do Norte. Após seis dias de intensos protestos, cerca de 63 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e outras milhares foram presas.

Neste sentido, os vários protestos que tem sido vistos nos últimos anos não são uma novidade na sociedade norte-americana, tampouco são desnecessários no atual cenário e, infelizmente, muito provavelmente, ainda serão necessários em um futuro próximo.

Em nove de agosto de 2014, foi assassinado o jovem afro-estadunidense Michael Brown, de 18 anos, desarmado, pelas mãos do policial branco Darren Wilson, em Ferguson. Nos dias seguintes, muitos cidadãos, em sua maioria afro-americanos, retornaram as ruas para reclamar não apenas pelo fato ocorridoem si, o que já seria um motivo suficiente, mas para questionar, em especial, porque até hoje continua-se a violar os direitos das pessoas negras. Muitos protestos se seguiram desde então, entretanto, o índice de assassinatos de afro-americanos só aumentou nos últimos meses. O caso recente mais emblemático ocorreu em abril deste ano. A morte de Freddie Gray, de Baltimore, Maryland, também gerou importante comoção.

Infelizmente, as situações vividas em Los Angeles, Ferguson e Baltimore não são a exceção e sim a regra em uma sociedade que está doente e que não consegue se libertar de seu passado escravocrata, nem proporcionar oportunidades mais equidistantes para as pessoas e tratar com mais dignidade seus cidadãos, descendentes de negros, africanos, trazidos a força para este continente para trabalhar em prol da prosperidade de poucos.

No dia 9 de abril de 2001, na cidade de Cincinnati, no estado de Ohio, um policial branco matou um jovem negro de 19 anos. O nome dele era Timothy Thomas. O fato provocou revolta na população e mais 70 pessoas ficaram feridas como consequência dos protestos pela morte do rapaz, que não estava armado.

Em fevereiro de 2012, a população dos EUA teve de acompanhar o assassinado em Sanford, Flórida, do jovem Trayvon Martin, de 17 anos, por um guarda de segurança que o considerou suspeito, enquanto no dia 30 de abril de 2014, o policial Christopher Manney disparou 14 vezes contra Dontre Hamilton, de 31 anos, que estava desarmado. Poucos meses atrás, um homem branco matou 9 pessoas em uma Igreja, todas negras, e admitiu que as assassinou, mesmo sem se quer conhecer nenhuma delas, apenas por motivação racial.

Em julho do ano passado, poucos dias antes dos acontecimentos em Ferguson, Eric Garner, de 43 anos, morreu depois de ser estrangulado pelo agente branco Daniel Pantaleo. Estes e outros casos inspiraram o movimento Black Lives Matter (A Vida dos Negros Importa). O grupo vem crescendo e ganhando apoio. É bem sintomático do caos social em que os EUA estão mergulhados que o movimento se intitule com tais dizeres. O simples fato de ser necessário dizer estas palavras mostra que as mudanças ainda precisam ser bem mais profundas e que os avanços construídos com base, inclusive, no sacrifício de extraordinários líderes da luta pelos diretos civis ainda são poucos, embora imprescindíveis. Oprimir uma porcentagem significativa da população, que possui fundamental relevância na construção do país, pode desencadear conflitos étnicos graves em uma região na qual as raízes de um sentimento racial beligerante não foram muito bem enterradas.