A “feira de sombras” do fascismo: um poema de Pasolini

Em 1957, Pier Paolo Pasolini publica o livro de poemas As cinzas de Gramsci. O livro é composto por onze poemas relativamente longos, nos quais os impasses da Itália do pós-guerra são tratados por uma poesia de tino civil muito acurado e de rara sensibilidade.

Por Alexandre Pilati*, para a Fundação Maurício Grabois

Ilustração - Reprodução

Neste livro, encontra-se um belíssimo e desconcertante poema intitulado “Comício”. Nele narra-se o momento em que o poeta, a vagar pelas ruas de Roma, depara-se com um comício fascista. Como se estivesse em uma cena do inferno de Dante, o poeta reencontra um fascismo tétrico e resistente na sociedade italiana e junto com ele velhos fantasmas.

Numa das passagens mais belas do texto, Pasolini chama a turba fascista de “feira de sombras”. A seguir, apresento a minha tradução do poema “Comício”, pois gostaria muito que refletíssemos sobre o que está em jogo neste cenário político brasileiramente dantesco.

Que consigamos aprender com a sensibilidade estética e a razão civil e democrática do grande poeta italiano. Não deixemos passar impunemente o crescimento do fascismo no Brasil.

Leia o poema na íntegra:

Comício

Pier Paolo Pasolini (1954) – Trad. Alexandre Pilati (2015)

Aqui é mais puro, em seu quieto
terror – se as noites já difusas
tremem aos últimos poéticos rumores
de mera vida –, o encontro dos beirais
urbanos com o breu do céu.
E muros empalidecidos, infecundos

canteiros, delgadas cornijas, no mistério
que as embebe de cosmo, familiar
e alegremente, fundam o seu segredo. Mas

esta noite uma imprevista viravolta sobre
as ignaras fantasias do pedestre se desata
e gela o seu arroubo pelas quentes, amadas

paredes mundanas…

Não mais, como num adro de passos sonoros
porque raros, de vozes transparentes
porque quietas, entre esplendores

de pedra humilde, a praça dança
no breu das esquinas: já não rumorejam
solitários os carros dos poderosos,

a tocar de raspão o flanco do jovem pária
que embriaga com seus assobios a cidade…
Uma pálida multidão enche o ar

de irreais rumores. Um palco está
acima dela, coberto de bandeiras,
de cujo branco a luz morena faz

um sudário, o verde cega, enegrece
o vermelho como o sangue seco. Espiga
ou tétrico vegetal, tremula, cérea,

ao centro, a chama fascista.
A dor, inesperada, faz-me
recuar, quase como se não quisesse ver.
E reagindo às lágrimas que apagam

o mundo tão vivo ao meu redor, no entardecer
da praça, lanço-me desesperadamente
em meio a esta feira

de sombras. E observo, escuto. Roma
ao meu redor emudece: a um só tempo
o silêncio é da cidade e do céu. Não retumba

voz alguma sobre estes gritos; o quente grão
que o maio faz germinar até no frescor
noturno, um grave e antigo gelo comprime

sobre os muros robustos, já aflitos,
como os sentidos de um menino
angustiado…E quanto mais crescem

os urros (e no coração o ódio), mais árido
se faz o deserto no entorno
da tarde, onde o trivial e indolente

sussurro está perdido na noite…

Eis quem são os exemplares vivos,
vivos de uma parte de nós que, morta,
nos havia iludido com novidade – privados

para sempre dela. E assim percebida
de repente, nesta delicada praça
oriental, eis a sua falange, espessa,

ululante – com os signos da raça
que no povo é obscura alegria
e nesta outra apenas triste obscuridade –

que delira cantando a sanidade. E esta energia
não é senão fraqueza, insulto sexual,
pois não dispõe de outro caminho

para ser paixão na mente acesa,
a não ser ações demasiado lícitas ou ilícitas:
e aqui urra tão somente a burguesa

impotência a transcender a espécie,
na confusão da fé que
a exalta, e desesperadamente cresce

no homem que não sabe que luz tem dentro de si.

Fico de pé em meio a esta multidão quase
de gelo, e desde Trinitá dei Monti,
desde os duros vegetais do Pincio, arrasados

sob as estrelas e os horizontes cerrados,
a cidade se apaga – se me apaga o peito,
meus mutilados sentimentos tornam-se

puro estupor, piedade, amargura. Lanço
ao meu redor olhares que não parecem meus,
eu que tão diferente sou. Não têm eles o aspecto

de gente viva como eu, nos seus
rostos há um tempo morto que retorna
inesperado, odioso, quase como se os belos

dias da vitória, os amenos dias
do povo, estivessem mortos.
Eis, para quem andou avante,

o passado, os fantasmas, os instintos
renascidos ao redor. Estes rostos juvenis
precocemente velhos, estes turvos

olhares de gente honesta, estas vis
expressões de coragem. Seria
a memória tão amortecida e suave

que não recorda? Entre os clamores,
caminho mudo, ou talvez sejam mudos
tais clamores na tempestade que tenho no peito.

E ao sentir que perco o próprio corpo,
o que me dá uma angústia
imprevista, em silêncio ao meu lado

aparece um companheiro. Como eu,
decidido e indeciso, move-se na massa, junto
comigo olha os rostos desta gente, como eu

o mísero corpo arrasta entre peitos
condecorados de vil orgulho. Depois sobre mim
pousa o olhar. Tristemente ardem-lhe

pudores que bem conheço; e é
muito minha aquela mirada fraterna!
tão profundamente irmão

no seu pesar que dá a estes atos um sentido
eternal! E neste triste olhar acordado,
pela primeira vez, desde o inverno

em que o seu destino foi detido,
e jamais estimado, meu irmão me sorri,
fica perto de mim. Tem dolorosa e viva,

no sorriso, a luz com a qual mirava,
obscuro partigiano, com menos
de vinte anos, o jeito como decidia

com verdadeira dignidade, com fúria
sem ódio, a nossa história nova: e há uma sombra,
humilhante e solene, naqueles pobres olhos…

Ele pede piedade, com aquele seu modesto,
imenso olhar, não para o seu destino,
mas para o nosso…E é ele, honesto demais,

puro demais, quem deve andar cabisbaixo?
Mendigar um pouco de luz para este mundo
renascido nesta obscura manhã?