Matheus Pichonelli: Quando o racismo sai do armário na internet

Quando temos certa idade, deveríamos, mas nem sempre temos noção da nossa posição no mundo. Levamos tempo para compreender nosso discurso. Para aprender a inverter a fala. A ouvir a posição do outro. Perto dos 20 anos, começava a ter opinião formada sobre determinados assuntos e não me dava conta do quanto minha posição influenciava a forma como olhava (ou não olhava) para certas nuances.

Por Matheus Pichonelli, no Yahoo

Black face

Por exemplo: quando cheguei à faculdade, acompanhava com interesse o debate sobre cotas raciais e, na ânsia de me posicionar, cheguei a escrever artigos sobre a suposta contradição de quem exigia ser tratado de forma igualitária e apoiava uma lei que o distinguisse dos demais.

Eu, que jamais havia sido discriminado pela cor da pele, entendia a universidade como um local de portas abertas a todos. E que eram merecedores do acesso aqueles que corriam mais e melhor em direção a um ponto de chegada igual para todos.

O problema, aprendi depois, não era o ponto de chegada, e sim da largada.

A minha começara muitos anos antes, quando meus pais me tiraram da escola pública, em pleno declínio no início dos anos 1990, e me matricularam numa instituição particular.

No meu tempo de estudante, não me faltaram livros nem transporte para a escola. Com exceção de alguns arranca-rabos naturais, jamais me senti excluído ou mal recebido ali.

Professores, funcionários e colegas me chamavam pelo nome. Me chamavam para as festas. Não me faziam perguntas sobre algo exótico em meu corpo, meu cabelo, minha religião, minhas raízes. Nem usavam apelidos para lembrar uma condição subalterna de meus pais e avós quando tentava me expressar e mostrar que era um deles.

Meus pais, que jamais foram barrados em festa alguma, tinham livros em casa e acesso aos jornais (quando a crise apertou, a vizinha começou a emprestar as edições dos dias anteriores). Ninguém mudava de calçada quando a gente passava. Nem nos barrava para averiguação de elemento suspeito. Nem negava emprego por não apresentarmos boa aparência. Estávamos, mais do que tudo, representados na novela, nas propagandas, nas revistas, nos postos de comando. Ver um de nós na frente da sala não era estranho. Não aqui.

A vida era corrida, dura, muitas vezes injusta, mas não precisávamos conciliar tempo de estudo com faxina, como faziam os filhos da nossa empregada e caseiros da chácara. E como faziam os pais deles. E os avós. E os bisavôs escravizados.

Não significa que não me esforcei para entrar na faculdade. Alguns colegas, inclusive, não entraram. Mas demorei a me dar conta de que disputava uma prova de tiro curto e com equipamento adequado, enquanto boa parte de um país que eu não conhecia disputava uma maratona descalça. Meu equipamento adequado foi um tapa no ombro quando não passei em faculdade alguma ao fim do terceiro colegial:

-Fica tranquilo. Ainda tem o cursinho.

Dentro de casa, o valor do estudo era inversamente proporcional ao risco de sobrevivência. Tínhamos o tempo a favor. Podíamos estudar tranquilos em quartos e salas fechadas sem ninguém nos dizer que aquele (seja qual for) não era o nosso lugar. Como eu, os brancos eram maioria nas faculdades que cursei, como eram maioria nas escolas, nos cinemas, nas livrarias, etc. Mesmo não sendo maioria na população geral.

Parece óbvio, mas notar as invisibilidades e perversidades invisíveis de nossas cidades leva tempo. A sorte – e já abordei isso aqui no blog – é que não havia YouTube nem redes sociais para gravar manifestações que me fariam corar anos depois. Provavelmente, se tivesse dez ou 15 anos a menos, eu hoje estaria compartilhando textos sobre “somos iguais e pronto, cotas e afins são para os fracos”.

Comentários assim foram postados no pé da notícia sobre um grupo de estudantes de medicina que publicou fotos com o rosto pintado de preto e as hashtags #pestenegra e #negritude e comentários em tom de deboche do tipo “inclusão social”. O caso aconteceu na cidade onde nasci e me criei, Araraquara. Segundo as estudantes, os rostos haviam sido pintados apenas com as cores da faculdade. Os comentários, que podem ser lidos AQUI, são mais comprometedores.

O roteiro é conhecido. A ofensa, consciente ou inconsciente, é justificada, pelos envolvidos ou pelos amigos dos envolvidos, com os argumentos de sempre: “vocês não entenderam”, “preconceito é procurar pelo em ovo”, “vai carpir terreno”, “hoje em dia tudo é racismo”, “não temos liberdade de expressão”, “bom era o tempo em que podíamos fazer piada e ninguém se ofendia”.

É a reação à reação de quem se diz ofendido pela foto – uma reação que nos desobriga a entender os motivos para a ofensa. O blackface, para quem não sabe ou jamais buscou saber, é considerado uma das piores formas de retratar e reforçar estereótipos. Geralmente usada no teatro ou no cinema, a técnica é aplicada sobre personagens quase sempre caricatos, submissos e com caráter duvidoso. Só tem graça para quem jamais se viu representado, e recentemente produziu uma longa discussão entre atores de um grupo de teatro e militantes negros, acusados por muitos, ao manifestar o incômodo, de “censura”, “perseguição”, “auto-preconceito (sic)”.

É a estratégia de quem se incomoda com o incômodo do ofendido: atribuir a ofensa a um chilique de alguém mal resolvido consigo mesmo. É uma forma também de minimizar (ou anular, no caso extremo) a fala de quem não estamos acostumados a ouvir. (Para quem se interessar, a Stephanie Ribeiro, uma das principais vozes do movimento negro hoje do país, dá uma aula sobre o assuntoNESTE debate)

Em casos como este, espalhamos as digitais do que temos de pior: a ignorância e o descaso com a dor (histórica) do outro. Isso só acontece quando passamos a compreender, ou nos esforçamos para compreender, uma posição privilegiada no debate. A começar pela determinação sobre o que ofende ou não.

Pode não resolver a raiz da questão, que é fundada e se desenvolve na violência (da retirada da terra de origem à negação de direitos básicos, como o da fala). Mas reconhecer esta posição minimiza nossa exposição ao ridículo. E ajuda a desconstruir nossos preconceitos mal reconhecidos ou identificados.

É o suficiente?

Não. Nem garantirá que seremos profissionais mais ou menos brilhantes. Mas nos ajuda a ser um pouco mais respeitosos com a dor alheia. E a ouvi-la quando ela se manifesta.