Debate na ONU evidencia necessidade de alternativas à ordem hegemônica

As alternativas ao “realismo” e ao liberalismo imperante precisam de novo impulso. Em guinadas emancipatórias, críticos da ordem hegemônica, movimentos sociais anti-imperialistas, acadêmicos e líderes progressistas – ou não – promovem a construção de um sistema mais justo e representativo. Entretanto, deparam-se com a reação das potências para a manutenção daquela ordem, com discursos que promovem políticas endurecidas.

Por Moara Crivelente*, para o Portal Vermelho

Assembleia Geral da ONU - ONU

No meio acadêmico, na década de 1990, a crítica era contra a legitimação da ordem pela corrente do “realismo” e também pelo liberalismo. A busca era pela emancipação e por novas formas de saber, de construção do conhecimento, o que abalou estruturas na produção científica e também na formulação de políticas externas, assentadas em valores liberais, inclusive para a promoção da paz.

A abertura da 70ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNA), nesta segunda-feira (28), mostrou que a reação das potências imperialistas, já sentida no início deste século, é de desconforto com a possibilidade de mudança. São expansivas e cada vez mais inevitáveis, porém, as guinadas anti-imperialistas e contra-hegemônicas em vários níveis, na busca pela discussão de novos avanços, para além da belicosidade retrógrada, como é o caso dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. (Ouça aqui a entrevista da presidenta Dilma Rousseff sobre o papel do Brasil neste foro)

Discursaram na Assembleia Geral as presidentas do Brasil, do Chile e da Argentina, assim como o presidente de Cuba, da Rússia, do Irã, dos Estados Unidos e da França. Foram exemplos, apesar das sinalizações de aproximação necessárias, do contraste profundo entre as prioridades e posições sobre a ideia de “segurança”. Entre aquelas sinalizações esteve o encontro entre os presidentes da Rússia e dos EUA, Vladimir Putin e Barack Obama, sob grande atenção midiática ao tratar da situação na Síria e na Ucrânia, campos em que os dois países têm posições opostas. A ocasião demonstrou a necessidade de fortalecimento da ONU para a resposta conjunta às crises internacionais, ou a organização ficará sujeita ao descrédito e à deslegitimação.

Maior representatividade no sistema internacional

A presidenta Dilma Rousseff participará da reunião do G4 – Brasil, Índia, Japão e Alemanha, que reivindicam assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU – ainda no sábado (26). Os líderes dos quatro países notaram com preocupação a falta de “progresso substantivo desde a Cúpula Mundial de 2005, na qual todos os chefes de Estado e governo apoiaram por unanimidade uma reforma urgente do Conselho de Segurança como elemento essencial do esforço mais amplo para reformar as Nações Unidas”. O tema também introduziu o discurso da presidenta Dilma, que abriu a sessão da AGNA na segunda-feira. Uma decisão adotada unanimemente pela instância em 14 de setembro colocou-o no centro da agenda desta sessão.

Líderes do G4 (Brasil, Índia, Japão e Alemanha) reúnem-se em Nova York no sábado (26) para discutir reforma
do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

De acordo com o comunicado conjunto do G4, “um Conselho de Segurança mais representativo, legítimo e eficaz é mais necessário do que nunca para lidar com os conflitos e crises globais, que têm proliferado nos últimos anos” e, atualmente, “mais Estados membros têm capacidade e disposição para assumir maiores responsabilidades em relação à manutenção da paz e da segurança internacionais”. Também se explica a busca por expansão do órgão com as contrastantes perspectivas e alternativas entre os diferentes países e regiões sobre a construção da paz.

Para os movimentos sociais e intelectuais no impulso anti-imperialista e crítico da ordem hegemônica, um princípio essencial é a paz que se pretende: fundamentalmente justa, sustentável, distributiva, de transformação social e emancipação, de soberanias nacionais. Estas são alternativas à noção liberal, simplista, cujos valores são impostos pelas potências hegemônicas através de uma miríade de instrumentos – desde as “ajudas” financeiras condicionadas a reformas até as intervenções militares.

Um exemplo foi a sempre iminente intervenção contra o Irã, acusado pelas potências de produzir armas nucleares. Desde a Revolução de 1979 que derrubou o regime autocrático sustentado pelos EUA, o Irã sofre o acosso das sanções, o que para estados como o Brasil é inaceitável. Este é um instrumento ao qual as potências recorrem facilmente quando se trata de governos que não se aliam aos seus interesses – Síria, Irã, Venezuela, Cuba, entre outros – ou que rechaçam quando se trata dos seus aliados – como Israel, condenado por Dilma em seu discurso pela contínua construção de colônias ilegais nos territórios do Estado ocupado da Palestina.

Contra a militarização da resposta às crises

O foco dos confrontos incidiu sobre a Síria, há quatro anos mergulhada num conflito brutal que já matou mais de 240 mil pessoas e forçou ao deslocamento ou ao refúgio outras milhares, sujeitas à migração de risco e a políticas regressivas na Europa, em verdadeiras tragédias humanitárias. Enfrentando sanções econômicas enquanto as potências debatiam a intervenção militar, o país arca com 70% da ajuda humanitária à sua população, ainda que em outros fronts tenha que combater grupos armados proliferados, principalmente financiados pelos Estados Unidos e regimes árabes vizinhos, como a Arábia Saudita.

Uma coalizão realiza ataques aéreos a pretexto de combater o autodenominado “Estado Islâmico”, autor de crimes hediondos contra a população da Síria e do Iraque, enquanto bombardeios sauditas no Iêmen mataram cerca de 130 convidados em um casamento na mesma segunda-feira. No Afeganistão, que há apenas nove meses despediu-se das tropas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), presentes desde a invasão de 2001, o grupo Talibã avança e conseguiu tomar, no mesmo dia, a estratégica cidade de Kunduz, evidenciando a insustentabilidade da invasão militar e da atuação imperialista forânea, assim como se vê no Iraque.

Os presidentes François Hollande e Barack Obama voltaram a demonstrar a intenção de derrubar o governo do presidente sírio Bashar al-Assad. Obama taxou-o de “tirano”, repetindo um mantra midiático, mas indicou – embora sejam evidentes as ligações dos EUA com os grupos armados, inclusive com os que perpetram os mais horrendos atos de terrorismo – estar “disposto” a atuar com Assad para combater o “Estado Islâmico”. A França, porém, prega a derrubada de Assad. Atém-se ao trajeto após enviar suas tropas ao Mali e à República Centro-Africana, numa demonstração de neocolonialismo militarizado.

Putin e Dilma, por outro lado, apelaram ao diálogo, à inclusão e à compreensão de que as nações devem resolver internamente as suas disputas. No estado avançado da situação na Síria, com o combate ao terrorismo, entretanto, a atuação estrangeira deve incluir o governo Assad, recém-eleito pelos sírios, ou apresentará mais uma catástrofe humanitária de proporções estruturais às próximas sessões da Assembleia Geral.

A insustentabilidade das ações imperialistas de intervenção, ameaça e acosso já se evidenciou para o mundo, que no aniversário de 70 anos da ONU discute novos objetivos de desenvolvimento sustentável, novos mecanismos de cooperação e novas estruturas para a construção da paz justa e sustentável, através de um sistema alternativo e mais representativo, que enterre uma estrutura aparelhada pelas potências imperialistas para a manutenção da sua hegemonia.

Atualizada às 12h00 para acompanhar o número de vítimas no Iêmen.