Argentina peita fundos abutres, que atacam economia de países pobres

Em meio a uma disputa jurídica contra fundos especulativos detentores de títulos da dívida pública, a Argentina pode comemorar a vitória de algumas importantes batalhas dessa guerra – conquistou a opinião pública, não abriu mão de sua soberania e lidera um rechaço mundial aos chamados fundos abutres, que golpeiam e ameaçam a economia de países pobres e em crise.

Por Joana Rozowykwiat

Fundos Abutre cartaz

Os fundos abutres são entidades comerciais privadas que fazem dinheiro se aproveitando de países em dificuldades financeiras, com a compra de dívidas insolventes a baixo preço. Ou seja, tal qual a ave necrófaga, se alimentam daqueles sem condições de se defender. Em seguida, esperam pelo momento certo para forçar estes países, judicialmente, a comprar de volta a dívida, por preços estratosféricos.

Assim, especulam sobre a dívida pública, comprometendo recursos que deveriam ser utilizados em benefício da maioria do povo. Embora tenha ganho notoriedade pelo caso argentino, esse tipo de prática já vitimou muitas outras nações. A novidade é que, apesar da campanha que fizeram contra a Argentina, tentando imputar-lhe a pecha de caloteira, os fundos abutres têm sido condenados pela diplomacia global.

"Não só são terroristas os que colocam bombas, mas também aqueles que desestabilizam a economia de um país a partir do pecado da especulação, causando fome e miséria", disse a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, após comemorar a aprovação, por parte da ONU, de uma série de princípios que buscam barrar a ação dos fundos especulativos abutres, garantindo o direito dos governos contra a ação de uma minoria de credores litigantes.

O texto aprovado nas Nações Unidas no mês passado “condena as atividades dos fundos abutres pelos efeitos negativos diretos que exercem sobre a capacidade dos governos de cumprir suas obrigações em matéria de direitos humanos – sobretudo os direitos econômicos, sociais e culturais e o direito ao desenvolvimento – e o pagamento da dívida a esses fundos em condições predatórias”.

Na semana passada, foi a vez do G-24 – grupo que reúne os ministros da Economia de países emergentes – apoiar a luta da Argentina. "Trata-se de impor um limite aos piratas do século 21, os fundos abutres, que, faltando uma legislação global, aproveitaram a pobreza de muitos países", afirma o ministro das Relações Exteriores da Argentina, Héctor Timerman.

A catástrofe neoliberal

Toda a confusão envolvendo a dívida do país vizinho remete aos tempos em que os hermanos seguiam a cartilha neoliberal. De acordo com Maurício Abdalla, professor da UFES, a Argentina “estabilizou a economia seguindo a receita cambial (com as conhecidas consequências para as transações comerciais externas), aumentou enormemente a dívida para financiar o Estado com capital especulativo, privatizou todos os setores estratégicos da economia e assinou acordos em que aceitava a arbitragem internacional para dirimir conflitos financeiros”. Era a raiz da catástrofe.

O resultado foi a explosão da dívida, que, em 2001, levou o país à moratória (quando um país se declara incapaz de pagar o que deve), na maior crise de sua história. Em poucos dias, o país trocou de presidente quatro vezes.

Naquele momento, o PIB tinha caído mais de 20% desde 1998, o desemprego estava acima dos 25%, metade da população vivia na pobreza e a desindustrialização era uma realidade – entre 1996 e 2002, 9140 empresas foram fechadas.

Quando Néstor Kirchner assumiu a Presidência, em maio de 2003, o país beirava o abismo. A dívida rondava os 160% do PIB, havia recessão e nenhum crédito. Numa tentativa de solucionar o caos econômico sem promover ajustes que impedissem o crescimento, Kirchner iniciou então um processo de reestruturação da dívida.

Após um grande e complexo esforço dos governos Kirchner para equacionar os débitos sem penalizar a população e a soberania nacional, em 2010, os portadores de 93% dos títulos argentinos já tinham aceitado a renegociação da dívida. E, de lá para cá, o país vinha honrando o cronograma de pagamentos, reduzindo a sua dívida a 40% do PIB. O plano kirchnerista de desendividamento tinha se mostrado, então, bem sucedido.

 
A peleja contra os abutres

O problema hoje está no irrisório percentual de 1,5% dos títulos, classificados como fundos abutres, cujos portadores não aceitaram acordo com o governo. Isso porque sempre esteve nos planos desses investidores especulativos transformar a “carne podre” da crise argentina em muito dinheiro para seus próprios bolsos.

Eles entraram então na Justiça norte-americana (lembra da arbitragem internacional?), pelo questionável direito de receber a remuneração de seu capital nos valores previstos antes da moratória, acrescidos de juros de mora. Quer dizer, compraram os títulos por uma pequena fração de seus valor de face e, agora, querem receber quantias exorbitantes por eles. ´

Ocorre que o juiz da Corte de Nova York, Thomas Griesa, posicionou-se a favor dos abutres e determinou que a Argentina pagasse aos fundos 1,3 bilhão de dólares. O imbróglio é ainda maior do que parece, já que os demais investidores, que já haviam aceitado a renegociação da dívida, poderiam entrar na justiça reclamando tratamento semelhante.

No meio de 2014, Griesa bloqueou um pagamento de 539 milhões de dólares em juros de bônus da dívida reestruturada, depositados pela Argentina no Bank of New York Mellon (BoNY), para forçar o país a cumprir sua decisão e pagar aos fundos abutres. A determinação desencadeou uma discussão sobre se o país tinha entrado ou não em situação de não cumprir com os pagamentos (default).

Diante do impasse, Joseph Stiglitz, vencedor prêmio Nobel de Economia em 2001, chegou a afirmar que "esta é a primeira vez na história que um país pode e quer pagar os seus credores, mas é impedido pela Justiça".

No início deste mês, contudo, um tribunal de apelações de Nova York rejeitou o pedido de Griesa para que o dinheiro retido seja entregue aos investidores de rapina. Esta é a terceira vez que esse órgão judicial recusa uma decisão do juiz. Desde o bloqueio, o dinheiro ficou congelado no banco.

Romper a dependência

A resistência dos governos Kirchner parece ter rendido frutos, servindo para fortalecer a luta contra os fundos abutres no mundo todo. Nos últimos tempos, o apoio da comunidade internacional, com a sinalização de que se deve estabelecer limite à especulação descontrolada deste tipo de capital financeiro internacional, tem servido de alento ao país vizinho.

“Depois da resolução da ONU, creio que é muito difícil pagar os fundos abutres, assim, com os olhos fechados, como propunham alguns antes”, disse o ministro de Economia da Argentina, Axel Kicillof, à Telesur. Para ele, que defende o respeito à soberania do país para a renegociação de suas dívidas, o apoio internacional é “o maior exemplo da luta e da dignidade de um país comprometido com seus deveres.”

Kicillof criticou a política dos organismos internacionais de crédito que, segundo ele, não teriam interesse em que os países quitem suas dívidas, estimulando, assim, uma “nova forma de dependência”, avaliou. Segundo ele, desta forma, tais organismos subjugam as nações em crise não pela força dos "mísseis", mas "impondo programas econômicos e orientações políticas” a elas.

Neste sentido, o ministro defendeu a postura argentina, que tem pago sua dívida sem "acatar as recomendações" do FMI, o que permitiu ao país "recuperar sua autonomia".

Confira entrevista do ministro à Telesur, em espanhol: