Cascudo, um santo do povo no museu da língua portugesa

O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, abriu exposição sobre Luís da Câmara Cascudo. A desvairada poderá descobrir, assim, o descobridor do Brasil. A exposição tnta apresentar o homem e parte de sua obra, vastíssima. Digo tenta, pois Cascudo é personagem para mais de uma vida. Certamente temos, ali, um aperitivo apenas, um saborzinho na boca para nos deixar desejosos de provar mais, de experimentar mais da obra do mestre potiguar.

Por Joan Edesson de Oliveira, para o Vermelho

Câmara Cascudo - Reprodução

Nascido em 1898 no Rio Grande do Norte, e lá morrendo em 1986, Luís da Câmara Cascudo dedicou a vida inteira a uma única pesquisa. Durante toda a sua vida, Cascudo estudou o povo brasileiro. O mesmo povo de outros dois mestres, o “povo capado, sangrado e ressangrado” de Capistrano de Abreu; o “povo único, uno, mestiço” de Darcy Ribeiro. Cascudo mergulhou fundo no Brasil, revelando as mil facetas do seu povo em mais de 150 livros.

Cascudo vaquejou a memória dos “brasis” escondidos dentro do grande Brasil, e de lá voltou com o mais completo panorama que um único homem traçou sobre o nosso povo. Seu Dicionário do Folclore Brasileiro, sozinho, já valeria por uma existência. Sua História da alimentação no Brasil, se fosse sua única obra, já bastaria para imortalizá-lo.

Creio que o grande mérito de Cascudo foi exatamente o de conseguir uma abrangência tal nos seus estudos sobre o povo brasileiro, que pouquíssimos aspectos foram deixados de fora. Da rede de dormir aos jangadeiros, vaqueiros, cantadores, passando pelos mitos, superstições, costumes, até as tradições da pecuária e os contos populares trazidos de Portugal, quase nada escapou ao olhar arguto do mestre.

Seu interesse não esbarrou apenas no “folclore”, como por vezes se cai na tentação de reduzir a sua obra; estudou os mais variados aspectos da nossa história, as contribuições portuguesa, holandesa, francesa, africana, indígena. Estudou sobre a presença de mouros e judeus na nossa cultura, escreveu sobre Dante Alighieri e a tradição da nossa cultura popular, pesquisou e escreveu sobre a cachaça, o açúcar, foi poeta e crítico literário.

Estudou sobre a religião, preocupado em descobrir como o povo resignificava os ensinamentos religiosos, tanto nas práticas oficiais quanto nas manifestações religiosas populares, nos oratórios das camarinhas e nas procissões, nos cultos públicos e nos terreiros escondidos.

Cascudo estudou os nossos gestos, nossa forma de olhar, o comportamento do nosso corpo, como elementos da nossa identidade cultural e do nosso dizer, da nossa afirmação cultural. Para os apreciadores da famosa “água que passarinho não bebe” Cascudo escreveu um Prelúdio da cachaça, pesquisa minuciosa, saborosa como tudo o que o mestre fazia.

Cascudo foi, sem dúvida, o descobridor do Brasil. Poucos conseguiram, como ele, se aproximar daquilo que poderíamos chamar de “alma” brasileira. Alma não em um sentido subjetivo e metafísico, mas como a soma dos elementos constitutivos da nossa cultura mestiça e das nossas tradições forjadas num cadinho de múltiplas influências. Essas múltiplas influências, forjadas nesse caldeirão de alquimia chamado Brasil, deram origem ao povo uno de que nos falava Darcy Ribeiro.

Pois foi esse povo uno o único objeto de estudo de Câmara Cascudo. Sem sair do Rio Grande do Norte, sem jamais se afastar da sua terra Natal (com trocadilho e tudo), Cascudo estudou e descobriu os inúmeros brasis que formam o nosso país. Com tanto amor pelo povo, não soa estranha a sua afirmação de que o melhor produto do Brasil é o brasileiro. Plenamente convencido disso, Cascudo dedicou sua vida ao estudo e ao entendimento desse povo.

Como ele mesmo disse, homem de fé mais do que de culto, eis que Cascudo virou santo, com direito a oração e tudo o mais. Durante o Simpósio Internacional de Contadores de História, ocorrido no Rio de Janeiro em 2007, Cascudo foi eleito Protetor da Tradição.

Os brasileiros que visitarem o Museu da Língua Portuguesa vão poder se reconhecer neste que foi um dos nossos melhores, um nordestino que descobriu e conquistou o Brasil.

Oração de São Cascudo

“Ajude-me, meu São Cascudo
Que tem coisas nesse mundo
Que só existem nas memórias
Do povo mágico das histórias.

Quero uma lição de geografia
Que um índio velho contaria
Para uma criança portuguesa
Se fartando com a sobremesa
De pé de moleque e brigadeiro
Junto com um peão boiadeiro.

São Cascudo, me diga o que é
Que vem de noite num só pé,
E como me livro dessa assombração.
Meu Santo Padroeiro da Tradição.

Agora vou me deitar na rede,
Pois eu sei que o Santo entende,
Que amanhã é dia de festança
Vai ter música, aguardente e dança
Pro meu coração enamorado.

Valei-me meu São Cascudo!…”