Impedir vítimas de estupro de tomar a pílula dá impunidade ao agressor

A senadora Ângela Portela, do PT de Roraima – estado com a maior taxa de estupros do país – avalia que a decisão de proibir a entrega da pílula do dia seguinte para mulheres vítimas de estupro, aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara Federal na última semana, é uma forma de penalizá-las mais uma vez, ao mesmo tempo em que dá impunidade ao agressor.

senadora Ângela Portela, do PT de Roraima

Para a parlamentar, a decisão dificulta ainda mais o combate ao estupro. “Se o projeto visa a penalizar as mulheres que usarem a pílula, por causa do estupro, estaremos diante da não punibilidade do agressor. Daí, o combate ao estupro ficará mais difícil”, diz. “Há um estereótipo de que as mulheres vítimas de estupro são culpadas. Tudo pode justificar o crime: ela estava andando sozinha, ela estava de saia curta, ela bebeu, ela entrou no carro, ela deixou ele entrar no apartamento.”

Só no ano passado, foram registrados 47.646 estupros no Brasil, segundo dados oficiais das secretarias estaduais da Segurança coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foram contabilizadas, ainda, 5.042 tentativas de estupro. Roraima é o estado com a maior taxa do país: 55,5 casos a cada 100 mil habitantes. Espírito Santo tem a menor média: 6,1. Só outros três estados têm uma taxa inferior a 10 a cada 100 mil: Rio Grande do Norte (8,7), Goiás (9,4) e Minas Gerais (7,1).

A senadora não foi específica nas questões relativas a seu estado. “De modo geral, falando do Brasil como um todo, acredito que o tradicionalismo e o perfil machista e violento da sociedade têm uma interferência no quantitativo de crimes, especialmente nas ocorrências de estupro”, diz a senadora.

Confira a entrevista publicada no site da Rede Brasil Atual

Roraima é o estado com a maior taxa de estupros do país, segundo levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Que fatores colocam o estado no primeiro lugar do ranking?

Esses números refletem a banalização da violência, o conservadorismo e a forma como o estupro é visto pela sociedade. Na maioria das vezes, mulheres que sofrem violência sexual ainda são tratadas como “provocadoras” do crime, e não como vítimas. Muitas delas não denunciam à polícia por medo e vergonha. Também é preciso melhorar os equipamentos sociais de amparo às mulheres e assim fazer com que se sintam mais seguras para denunciar e pedir ajuda.

Como esse índice alto se reflete no dia a dia das pessoas do estado?

São várias situações. A primeira refere-se ao medo constante dos pais e adolescentes, considerando esse índice alarmante. O segundo, como já disse, é o estereótipo de que as mulheres vítimas de estupro são culpadas pela sociedade. Tudo pode “justificar” o ato abominável do estupro: ela estava andando sozinha, ela estava de saia curta, ela bebeu, ela entrou no carro, ela deixou ele entrar no apartamento. E por fim o medo de denunciar, que pode levar o agressor a reincidir no crime.

As taxas de estupro em outros estados da região Amazônica também são altas. Que características regionais interferem para que isso ocorra?

De modo geral, falando do Brasil como um todo, acredito que o tradicionalismo e o perfil machista e violento da sociedade têm uma interferência no quantitativo de crimes, especialmente nas ocorrências de estupro. Eu acho que quanto menos educada a sociedade, maior a ocorrência dos crimes de modo geral, e da violência contra a mulher, especificamente. A questão cultural é preponderante, e o perfil do estuprador não tem relação com cor ou condição social.

O que tem sido feito para reverter esse quadro e combater esse crime em Roraima?

Roraima tem projetos de promoção de políticas públicas para o combate à violência contra a mulher. O governo do estado (gerenciado por Maria Suely Silva Campos, do PP) mantém a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), que investiga todos os casos relacionados à violência contra a mulher, inclusive os de estupro. Além disso, conta com a Casa Abrigo de Maria, que visa a proteger as mulheres dos agressores, com a Coordenação Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres e trabalha na implementação do Programa 'Mulher Viver sem Violência', visando a garantir o atendimento integral e humanizado às mulheres em situação de violência.

Quais as maiores dificuldades no combate ao estupro? O que falta para avançar?

As soluções passam por investimentos maiores em políticas de enfrentamento à violência, o que inclui melhor segurança nas ruas, campanhas de conscientização e inclusão de debates sobre esse tema na educação, além de medidas legislativas de combate à impunidade.

No último dia 21, a CCJ da Câmara aprovou um projeto de lei que proíbe a venda da pílula do dia seguinte. Isso prejudica o combate ao estupro?

Consideravelmente, sim. A pílula do dia seguinte, hoje garantida por lei, visa a evitar que a vítima de estupro venha a engravidar de uma pessoa que a estuprou. Se o projeto visa a penalizar as mulheres que usarem a pílula, por causa do estupro, estaremos diante da não punibilidade do agressor. Daí o combate ao estupro ficará mais difícil.

Por que esse avanço conservador no Congresso dificulta mais as ações de combate ao estupro?

Do ponto de vista político, o avanço do conservadorismo no Congresso Nacional é delicado. Ali, é a casa de todas as vozes e pensamentos, mas não podemos deixar que a vontade de poucos se sobreponha às concepções da maior parcela da sociedade. Quero com isso dizer que não acredito que boa parte da sociedade aceite que uma mulher estuprada seja penalizada, por se recusar a ter uma gravidez que é fruto de um crime.

Também vimos na última semana uma série de comentários de cunho extremamente sexualizado dirigidos a uma criança de 12 anos, participante de um programa de TV, que caracterizaram pedofilia. Existe uma cultura de estupro no país? Por quê? Como combatê-la?

Não diria que existe uma cultura do estupro. Diria que existe uma cultura machista, patriarcal e discriminatória, que impõe à mulher um papel de subalternidade. Neste contexto, há homens que se sentem donos do corpo, da cabeça e até mesmo da vida das mulheres. Assim, podem explorar sexualmente, estuprar, agredir e até mesmo matar uma mulher, como mostram os índices de assassinato de mulheres em nosso país.

E pouco importa a idade. Daí a prática de pedofilia, que também é um crime, em geral praticado contra as mulheres, mas que também atinge garotos. O caso da pequena Valentina (participante do Master Cef Júnior, da TV Bandeirantes), de 12 anos, é um horror e revela que realmente estamos diante da sexualização da infância. Para combatermos toda esta cultura machista, precisamos lutar muito. Começando por intensificarmos as políticas de combate às práticas de violência sexistas. Temos leis importantes, como a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, e a lei de punição ao estupro. Precisamos também garantir delegacias de defesa da mulher, varas e juizados e as casas de referência, que acolham e apoiem as vítimas.