Juliane Cintra: Carta para você, menina preta

Hey, menina preta, proponho um trato: mais do que ler cada uma das linhas que estão por vir, você precisa acreditar. Entende? Acreditar.

Por Juliane Cintra*

Juliane Cintra - Suezo Photos

Porque, eu sei, às vezes parece mesmo que algo está fora do lugar e pode crer, é por aí, e digo mais, essa sensação não vai te abandonar. Mas já te adianto, a ideia aqui é não perder tempo e, para facilitar, resolvi esquematizar o caminho das pedras. Tudo bem, tudo bem. O caminho das minhas pedras… minhas, parecidas com as suas e de muita gente que veio antes de nós.

Entendo que você pode achar tudo isso uma baboseira, está mais afim de ver uma televisão ou voltar para o Facebook, porém, já que está aqui, me dá uma chance?
(…)
Da hora, vamos pra cima!

***

Bom, pra começar sem meia volta, a história é a seguinte, eu sei bem o que você faz trancada no seu quarto. Quer dizer, quase tudo! Calma, é só uma brincadeirinha pra descontrair… (Estou rindo agora). Porém, nem adianta ficar com vergonha, sair correndo e jogar a toalha em cima da cama. Ou mentir e dizer que nunca fez isso. Eu também já dancei com ela amarrada na cabeça e olha, na minha época, as músicas eram bem mais – como a gente diz hoje em dia – zuadas (tipo, bem ruins).

Quando tinha uns 5 ou 6 anos, tinha uma mulher loira, apresentadora de um programa famosão para crianças. Ela usava umas roupas fosforescentes e aparecia todas as manhãs nas televisões de todo o país. Não importa o que eu pense dela agora e nem o que ela virou, o lance era que todas as meninas queriam ser como ela e suas amigas. 

Mas, no meu caso, não dava para ser daquele jeito, e eu bem já estava sabendo: eu era completamente diferente, eu era preta. Só que realizava meu sonho de ser uma menina especial, em outras palavras, branca, amarrando uma toalha na cabeça e fingindo ser cantora, dessas que gritam muito em suas canções de amores perdidos.

O problema era que na escola não dava pra me sentir linda e poderosa com uma toalha na cabeça. E minha mãe não sabia muito o que fazer com o meu cabelo. Mandava cortar, no melhor estilo black na barbearia. Ia aos domingos com meu pai cortar quadradinho, batidinho atrás e com biquinho na frente. Meus pais achavam demais e saía me sentindo a princesinha do bairro quando voltava para casa.

Já na escola, a história era outra, sempre era confundida com os meninos… Não porque parecesse com eles, na verdade, tinha rosto preto, bonito como o seu: olhos jabuticabas vivos, daqueles que sorriem. Você já reparou como todo o seu corpo sorri? Seus lábios precisam abrir demais para soltar aquela gargalhada gostosa, os braços se mexem rapidamente, como a força das ideias que estão em sua cabeça e das histórias que conta. Viu como somos parecidas?

Então, a primeira lição é essa: pode brincar do que quiser trancada no quarto, mas não duvide de que você é linda. Sem negociação, você é mais do que especial. Mesmo quando rolam aqueles apelidos imbecis que nos desqualificam. O seu sorriso, neguinha, é uma das melhores armas contra os racistas.

Sei, às vezes cansa. Tenho vontade até hoje de ser verde por uns dias. Já que é para atrair os olhares cada vez que chegamos em um lugar, que seja por ser verde, o que me diz? O fato é que incomodamos. Todavia, quando não duvidamos do que somos, resistir é a alternativa que resume a nossa existência.

E digo isso porque a dúvida vai sempre pairar em seus pensamentos. Seja porque aquele cara que parece gostar de você de verdade evita estar contigo na frente dos amigos. Seja porque, naquele estágio bacana ou bico para garantir o rolê do final de semana, você não vai entender muito bem o que aconteceu quando a vaga for negada e um desses bocós sem cérebros consegui-la. E até quando você for no médico e parecer invisível na sala de espera, estando com aquela cólica enorme.

O remédio? Eu comecei a dar o tom da minha história. Por mais que tentem esconder, tem muita gente preta incrível, construa suas referências. Sou fã de uma maneira quase idiota da Ângela Davis. Se você vir o que ela fez e o black dela, vai entender do que estou falando. E nossa cultura? Trajetória? Heroínas? Você não tem ideia como somos as maiorais – estou evitando falar palavrões que nos defina como incríveis. Mas outras mulheres pretas, como nós, que atravessaram o caminho das pedras de trator, mandaram muito bem. E elas e seus ensinamentos estão aí.

O que serviu pra mim, neste momento, além de resgatar essas histórias, conhecer o nosso povo, foi fortalecer meus laços com outras pretas. Trocar, esse é o ponto. Somos muitas… Me arrependo um pouco do tempo que fiquei tentando ser “igual”. Se me chamam de diferente, estranha, o que for, é porque não viram o meu bonde. Somos destruidores.

Essa conversa, carta, não deveria terminar aqui. Tenho tanto pra contar. Mas para finalizar esse primeiro contato (veja que disse, o primeiro), queria dividir um conceito que descobri, meses atrás, com uma dessas mulheres negras geniais. Foi com ela que ouvi pela primeira vez a palavra reexistência. Isso resume. Reexistir para existir e transformar o cotidiano, enfrentar o racismo e perpetuar a nossa existência. Ser mulher e preta, por si só, tem esse conteúdo em sua definição.

Até a próxima, pretinha!
=)

OBS.: Que nesse dia da consciência negra, não se valorize a exceção, o exótico, a tragédia, o sucesso de alguns homens e mulheres pretos. Somos muitas, todas temos o que compartilhar. Asseguro que existir, ser preta no Brasil, por si só é uma demonstração de luta e força. Por isso dediquei as linhas desse dia a falar sobre o comum, a falar com a comum. Porque a luta contra o racismo e a necessidade dessa data está diretamente relacionada com o direito de existir que é negado ao meu povo desde que aqui chegamos. De, simplesmente, existir.

Pela nossa reexistência.

*Juliane Cintra, 30 anos, mulher negra, jornalista, coordenadora de comunicação na ONG Ação Educativa. Contribui com blogs e portais do campo das africanidades, latinidades e diversidade racial. É dançarina no bloco afro Ilú Obá de Min.