Cargos de confiança na administração superior – não é um vale-tudo

Deparei-me com interessante estudo de Félix Garcia Lopez, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Sob o título “Evolução e Perfil dos nomeados para cargos DAS na administração pública federal (1999-2014)”, o autor desfaz certa mitologia e apresenta propostas de mudanças para qualificar a burocracia de livre nomeação. Nada a ver com o senso comum fabricado contra a burocracia estatal brasileira e com a toada contra o presidencialismo de coalizão.

Por Walter Sorrentino*

serviço público

Dimensionando a burocracia de livre nomeação – cargos de direção e assessoramento superior (DAS) da administração pública federal – nos últimos 15 anos, o estudo examina o perfil e profissionalização dos nomeados, também segundo as diversas áreas ministeriais e indica algumas conclusões que não são as do senso comum promovido pela luta política midiática acerca do chamado presidencialismo de coalizão.

O autor sustenta: 1) o aumento do número de cargos nesses quinze anos estudados é inferior ao crescimento de outras funções de confiança e cargos comissionados do conjunto da administração federal (totalizando cerca de 23 mil num universo de 100 mil); 2) observa-se nessas nomeações ampliação da profissionalização da gestão do serviço público federal; 3) o debate público está enviesado sobre a questão da politização da gestão e “aparelhamento” estatal sem amparo empírico suficiente, ofuscando outros aspectos centrais do debate sobre a qualificação da alta gestão pública.

Os DAS têm seis níveis e totalizam 23.230 cargos. A regra de provimento restringe ao presidente da República autorizar as nomeações dos níveis DAS 5 e DAS 6, os mais relevantes política e administrativamente. Ambos representam menos de 20% do total, 1.349 cargos. A influência da presidência e lideranças político-partidárias se concentram neles, para cargos superiores em Brasília – no restante dos cargos há cotas mínimas exigidas para servidores públicos (75% para DAS 1, 2 e 3 e 50% para DAS 4), e 30% do total se situam nos estados.

Ademais, 58% dos DAS 4, 5 e 6 são ocupados por servidores públicos de carreiras federais, já integrantes portanto da burocracia estatal. O crescimento do volume de cargos foi relevante (40%), e mais ainda para os DAS 4, 5 e 6, mas acompanha a tendência da burocracia civil permanente e é até menor que o crescimento de cargos de confiança da administração federal (com novas agências criadas e em especial nas instituições federais de ensino superior).

Em 2014, metade do total de cargos DAS estava ocupada por servidores de carreira dos próprios órgãos. Do total, apenas 30% dos cargos são ocupados por servidores sem vínculos públicos. Ao desagregar os dados por nível, naturalmente, DAS 5 e 6 têm menos nomeados do próprio órgão (18% e 10% respectivamente), mas se forem incluídos nomeados de outras carreiras do serviço púbico federal, ou membros de carreiras com exercício descentralizado de função, os servidores com vínculos são maioria mesmo nos DAS 5 e 6. A tendência é certamente de ampliação de nomeados de fora das carreiras dos respectivos órgãos à medida em que aumenta o poder político e administrativo do cargo, mas isso se reduziu ao longo dos anos (no caso DAS 6 eram 53% em 1999, percentual que caiu para 43% em 2014).

Ou seja, nas palavras do autor do estudo: “O movimento geral me parece ser de aumento da profissionalização, ou seja, mais carreiristas ocupando essas posições de nomeações discricionárias”.

No que diz respeito ao perfil dos nomeados, há significativa variação entre órgãos e áreas de políticas públicas quando se analisa a natureza do vínculo do nomeado. Relações Exteriores, Fazenda, Meio Ambiente e C&T têm mais servidores das carreiras. A Fazenda é o ministério com mais cargos DAS e, a exemplo dos ministérios da Justiça e Saúde, o que sugere alguma relação entre esse número e o grau de ramificação dos órgãos pelo território como são as coordenações da Funai e departamentos da polícia federal (vinculadas ao MJ), os institutos de saúde e hospitais federais (vinculados ao MS). O MEC, que teria estrutura similar, se diferencia pela ocupação das posições por funções de confiança – das universidades, por exemplo –, não cargos DAS. A Presidência da República, por seu turno, é um órgão peculiar porque incorpora outros órgãos com status ministerial e por não ter uma carreira própria.

Outro aspecto bem interessante é o debate sobre a politização da gestão pública considerando os vínculos partidários dos nomeados aos cargos DAS. A maior parte não é filiada e, certamente, há maior probabilidade de que os que têm filiação sejam de partidos mais orgânicos. Nos DAS 6 são 33,2% os filiados, no DAS 5 16,8% e DAS 4 17,7% – no total dos 23 mil cargos, são 13,1%, pouco expressivo. Mas filiação partidária é um aspecto virtuoso da democracia, uma virtude cívica dos cidadãos. Na alta administração, é o que dá cara à orientação programática às administrações. Portanto, isso não se presta ao argumento de “aparelhamento” ou “politização da gestão”.

Não é um vale-tudo, não é o que parece

Para o autor, em termos mais gerais, o estudo indica que “se deve rejeitar a expectativa ou afirmação de ter havido crescimento das nomeações de patronagem, do ‘fisiologismo’ ou do uso dos cargos como ‘moeda de troca’ no nível federal, embora saibamos que esses motivos continuam a ser relevantes (centrais?) para compreender os arranjos políticos aos quais o processo de formação da burocracia política dá resposta”.

Sobrevalorizar este aspecto da discussão pública sobre o processo de definição dos quadros acaba por negligenciar dimensões que mereceriam igual ou maior relevo no debate sobre reformas visando qualificar os quadros e desempenho da alta burocracia. E um dos principais problemas a enfrentar são os efeitos negativos da alta rotatividade desses quadros sobre a capacidade de planejamento e implementação das políticas setoriais, que poderia ser atenuada por alterações que convertam cargos cujas atribuições são exclusivamente administrativas em funções destinadas aos membros experimentados nessas funções, no interior de cada órgão federal (ou por carreiras transversais).

“Converter cargos em funções para nomeados do interior dos órgãos – que teria como subproduto reduzir o alegado ‘excesso de cargos’, agora convertidos em funções – com sistemas internos que definam parâmetros razoáveis de seleção interna, premiando o desempenho, criaria incentivo adicional para os servidores federais ampliarem sua qualificação e formação. As regras que atualmente embasam as escolhas são percebidas como aleatórias – e nem sempre razoáveis –, se olhadas do ponto de vista da racionalidade do processo de seleção dos nomeados. Reduzir esta incerteza e premiar o desempenho e a excelência é também um estímulo à qualificação no interior dos quadros de carreira do serviço público. Associada a esta mudança, e com potencial efeito relevante sobre incentivos à qualificação do desempenho, seria implantar sistemas efetivos de verificação do desempenho dos servidores em suas funções ou cargos.”

“Enfatizar tais aspectos não diminui a pertinência e espaço para adequações importantes no volume de cargos DAS disponíveis, a importância da crítica para ajustes visando a ampliar a eficiência da gestão. Tampouco significa desconsiderar que parte talvez relevante destes cargos servem à necessidade de responder às injunções da política partidária, sem aderência às demandas de gestão.”

“Os arranjos do multipartidarismo e incentivos de nosso sistema eleitoral impõem forte pressão ao chefe do Executivo por criar estruturas paralelas de modo a contemplar grupos político-partidários desalojados das estruturas de poder. O problema está no descolamento observado entre a pluralidade de urgências a enfrentar em uma verdadeira agenda de modernização da gestão pública e o tom monódico de avaliações que são motivadas mais pela paixão política que pela responsabilidade analítica.”

Walter Sorrentino é médico e vice-presidente nacional do PCdoB