Ellen Meiksins Wood, as agências de risco e o imperialismo hoje

Morreu em Ottawa, no Canadá, no dia 14 de janeiro, vítima de câncer, a historiadora e cientista política marxista Ellen Meiksins Wood, uma das principais intelectuais da teoria política contemporânea. Professora da Universidade de York por três décadas ficou conhecida como uma das mais importantes teóricas de esquerda a partir de seus estudos sobre democracia, capitalismo e imperialismo.

Por Gustavo Guerreiro*

Ellen Wood

Sua vasta e original obra aborda temas que vão desde análises sobre a democracia ateniense até a política imperialista contemporânea dos Estados Unidos. Wood inaugurou o que chamava de “abordagem política marxista" para a história, fundamentada sobre uma crítica da teleologia e do formalismo das muitas formas de marxismo. Sua ideia era de reinventar o marxismo politicamente e historicamente. Foi autora de vários livros, destacando-se “Democracia contra Capitalismo: A Renovação do Materialismo Histórico”, “O Império do Capital” e o ensaio “A Separação do Econômico e Político no Capitalismo", publicado originalmente em 1981.

Wood refletiu sobre a diferenciação entre as esferas "econômica" e "política" como um problema prático e não apenas teórico. Para ela, não há maior obstáculo à prática socialista do que a separação das lutas econômicas e políticas que têm tipificado movimentos modernos da classe trabalhadora. A tenacidade desse discurso, no entanto, deriva precisamente da sua correspondência com as realidades e as formas em que a apropriação e a exploração capitalista dividem as arenas da ação econômica e política. Esta separação "estrutural" pode, de fato, ser o mecanismo de defesa mais eficaz disponível para a dominação do capital.

Sabotagem

Atualmente, a retórica economicista tem sido importante instrumento de sabotagem de países em ascensão como o Brasil. Em tempos de predomínio do capital financeiro, as agências de risco como Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch exercem influência política sem precedentes. A redução da pontuação de crédito por uma dessas agências pode destruir economias nacionais e criar um ciclo vicioso. As dificuldades em se obter crédito refletem não apenas nos custos de financiamento, mas impactam no bolso e na qualidade de vida das populações mais pobres.

Longe de representar os legítimos interesses de desenvolvimento ou crescimento econômico das nações, o objetivo destas avaliações de risco é garantir o lucro estratosférico dos bancos, mas vão além disso. Os efeitos políticos de uma decisão alardeada como “técnica”, sobretudo pelos analistas econômicos a serviço de grandes corporações midiáticas, são indiscutíveis.

No auge do conflito na Crimeia, região disputada entre Rússia e Ucrânia, a agência de risco internacional Moody rebaixou a nota de crédito dos russos para apenas um degrau acima do que eles chamam de “grau de investimento”, o índice mínimo para se investir com segurança. As agências Fitch e Standard & Poors seguiram a decisão. Colocaram a faca no pescoço de Putin, alegando "declínio acentuado dos preços do petróleo" e da "moeda nacional russa" como um obstáculo ao crescimento.

No Brasil, o governo de Dilma Rousseff enfrenta as dificuldades de passar pela maior crise econômica da história contemporânea. Não por acaso, com todo o protagonismo brasileiro na composição do BRICS, firmando posição independente em assuntos sobre conflitos internacionais e mudanças climáticas, e articulando a criação de um banco de investimento que rivaliza com o FMI, é deflagrada profunda crise política. A vitória apertada nas urnas, mostrou forças políticas com interesses contrários ao protagonismo do Estado como gerente estratégico do desenvolvimento autônomo, soberano e mitigador das desigualdades sociais, historicamente produzidas por essa mesma elite que sabota o país.

Dissimulação externa

A influência externa é dissimulada, como mandam os manuais de inteligência da CIA. Movimentos “espontâneos” como o MBL e o Instituto Millenium recebem recursos de organizações como a Atlas e a Students for Liberty, dos famosos irmãos Koch, com objetivo de sabotar governos de esquerda. Mesmo com as instituições republicanas funcionando como nunca, inclusive de forma abusiva e enviesada da Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário (onde um ministro do STF atua muito mais como político de oposição do que como magistrado), as agências de risco destacam a “crise de credibilidade das instituições brasileiras”.

O setor financeiro não tem escrúpulos para utilizar uma crise política pré-fabricada como argumento para a deterioração do crédito popular no país. A alta dos juros e o encarecimento do financiamento não são outra coisa senão a garantia do cupom de meia dúzia de bancos e a sabotagem, da indústria nacional, da economia e de um governo popular. Não é à toa que, mesmo em um cenário de crise econômica, os bancos lucraram em 2015 muito mais do que em 2014, o que já era o recorde mundial de lucratividade do setor.

Nos discursos da direita, açodados sobretudo pelos setores midiáticos, através de seus analistas, o principal fator que alimentará a crise econômica em 2016 é a “completa falta de credibilidade do governo e sua equipe econômica”. Revela-se mais uma estratégia bastante recorrente em espaços de disputa política em que o ideário neoliberal acusa de “perdulários” os governos populares. Soma-se a isso a cantilena de que os recursos são desviados para “sustentar o projeto criminoso de poder” do “Lulopetismo”, como dito irresponsavelmente pelo próprio Gilmar Mendes.

Os Estado nacionais vivem hoje um período de tensões financeiras permanentes. Em décadas passadas, quando o Estado de bem-estar social experimentava cortes orçamentários, vislumbrava-se a possibilidade de superação das crises internas com planejamento estratégico. O crescente poder político do setor financeiro nos últimos anos trouxe medidas de austeridade cada vez mais severas. Cortes mais drásticos em setores essenciais como saúde, educação, ciência e tecnologia, previdência e programas sociais, bem como uma crônica precarização do trabalho, em nome de metas de superávit primário e pagamento de juros da dívida pública cercam o Estado e o governo.

A fórmula não se aplica apenas ao Brasil, mas a todos os países que buscam o mínimo de autonomia interna ou inserção soberana no cenário internacional, como Venezuela, Rússia, China, Irã ou Argentina. O setor financeiro opera, assim, como força incoercível, em nome de interesses hegemônicos. É linha de frente do hegemonismo das potências econômico-militares globais.

Novo imperialismo

Ellen Meiksins Wood afirmou que os Estados que operam o capital global têm que organizar não só a sua própria ordem social interna, mas a ordem internacional entre os diversos Estados. A questão não é apenas dominar militarmente este ou aquele território, muito embora as estratégias de desestabilização de determinadas regiões, como na Ucrânia e nos territórios da Síria e do Iraque funcionem a todo vapor, tendo como pano de fundo a indústria militar estadunidense. A instalação de bases no Atlântico Sul, as manobras militares na península coreana e o AFRICOM confirmam que a dominação militar é indissociável do projeto imperialista ianque.

O novo imperialismo implica no policiamento político, econômico e militar de todo o sistema global de Estados, mas tem como meta fundamental assegurar que o capital possa transitar forma segura e rentável no sistema financeiro global. Para isso, não importa a legitimidade dos sistemas políticos locais. Em hipótese alguma será tolerada precedência da democracia sobre o capital financeiro.

As forças de esquerda se veem encurraladas. No Brasil os setores políticos do campo popular renunciam ao importante desafio de explicar que a crise econômica é, antes, uma crise política – que nela não há nada de “natural”, que o sistema existente resulta de uma série de decisões intrinsecamente políticas e que o Brasil não é uma ilha. Se Síria e Líbia, Iraque, Irã ou Venezuela sofrem sabotagem sistemática de sua ordem política e social, o que dizer de uma nação com 200 milhões de habitantes, que detém a sétima economia do planeta e que desempenha protagonismo internacional e se consolida como liderança regional? Wood nos ensina que, fora desse contexto de dominação imperialista e de hegemonia do capital financeiro internacional a serviço de potências econômico-militares, qualquer análise política esbarrará fatalmente em suposições rasteiras, no nosso caso, na simplificação do discurso moralista de combate à corrupção.

Falácia

No livro “Democracia contra Capitalismo ", Wood afirma que o papel da soberania popular não seria, portanto, limitar-se a uma "esfera" política abstrata, limitada ao processo político eleitoral, por exemplo, mas buscar uma desalienação do poder em todos os níveis da atividade humana, um ataque a toda a estrutura de dominação que se inicia na esfera da produção e continua em direção ao Estado.

No capitalismo, a democracia jamais se realizou, a não ser como artifício retórico ou mecanismo de dominação ideológica. A maior mentira contemporânea vende a ideia de que o mercado é o lugar em que se realiza a liberdade e que a política é a dimensão suja da vida social e deve ser evitada. Não há, portanto, economia sem política, muito menos liberdade sem luta.

*Gustavo Guerreiro é indigenista, pesquisador do Observatório das Nacionalidades da Universidade Estadual do Ceará (Uece), e editor executivo da revista Tensões Mundiais